quinta-feira, outubro 29, 2009

Receita de Leitura (17)


Dose de Amostra
Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:
— Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.
Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.
— Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego desta varanda é diferente.
Meu pai. A voz dele era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de silêncio. Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem palavras nem gramática.
Ao longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu era o escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno progenitor.

Mia Couto, (2009), Jesusalém, Caminho.

Composição
Jesusalém é um local remoto, feito casa, para Silvestre Vitalício, Mwanito, e Ntunzi e simultaneamente o palco de quase todos os acontecimentos no mais recente livro de Mia Couto. Em Jesusalém, a única presença feminina física reduz-se a Jezibela, a jumenta, no entanto é a omnipresença de Dordalma que empresta a intensidade a todo o romance e que o vai guiando até à última palavra. Que dor de alma se escreverá em Dordalma?

Indicações
A leitura de Jesusalém está recomendada a todos os indivíduos sem restrições. Pode ser lido pelos leitores mais cépticos aos mais fervorosos. A sintomatologia de contentamento foi evidente em todos eles. Os leitores fiéis de Mia Couto observaram uma melhoria acentuada de humor em virtude de se poderem deleitar com a prosa poética repleta de uma sensibilidade invulgar e de penetraram na intimidade de uma história apaixonante.

Precauções
Jesusalém é bem tolerado por todos os indivíduos. Leitores vorazes e bulímicos observaram pontualmente sintomas de privação quando deixaram o livro sossegar para regressar às tarefas entediantes do quotidiano. Esporadicamente foi registada ansiedade em terminar o livro dado a escrita contagiante e mágica. Indivíduos sugestionáveis tentaram sem sucesso afinar o silêncio, seguindo as pisadas de Mwanito e os mais aventureiros intentaram uma viagem a Jesusalém. Os leitores em busca da escrita cheia de neologismos a que Mia Couto nos habituou observaram um misto de desilusão, neste romance o escritor opta por outro registo, e de admiração, há poucos escritores tão doces e intensos quanto Mia Couto.

Outras apresentações
Se sentiu uma melhoria com Jesusalém, não deve descontinuar a leitura de Mia Couto.O escritor tem uma vasta obra abarcando vários géneros literários. Não há desculpa para não ler, só há óptimas razões para mergulhar na leitura.

quinta-feira, outubro 22, 2009

Verter em palavras

Primeiro pega-se num livro, qualquer livro serve, embora sugira um de que gostemos, depois, lê-se, muito bem lido, com notas à margem e sublinhados. A seguir deixa-se marinar durante um tempo, o suficiente para se fundirem os aromas, se casarem as personagens e enredo e daí surgir a leitura única que cada leitor faz de cada livro. Por último é só verter tudo em palavras e servir com carinho. Só me falta mesmo a última fase para mais uma das receitas de leitura. Brevemente aqui.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Os Meus Livros

A revista "Os Meus Livros", que também pode ser consultada na Biblioteca da Escola, está agora online neste sítio.

quarta-feira, outubro 07, 2009

E o Man Booker Prize 2009 foi para...


Grátis

A Cidade Depois de Pedro Paixão compreende textos do escritor sobre Nova Iorque depois do 11 de Setembro de 2001. O livro, entretanto esgostado, foi disponibilizado pelo próprio Pedro Paixão no seu site e pode ser descarregado aqui. Eu continuo a preferir o papel mas não deixa de ser uma atitude louvável de grande desprendimento e generosidade. Aproveitem.


terça-feira, outubro 06, 2009

quinta-feira, outubro 01, 2009

Para abrir o apetite...

Aqui fica um pequeníssimo excerto de Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?

Haverá noite para este dia digam-me, uma altura em que deixo de distinguir o salgueiro e depois do salgueiro a janela, os móveis desaparecem porque não acendemos a luz, ficam as pegas de metal a brilhar um momento, um frémito nas portas que ninguém gira, os meus irmãos procurando-se e eu em busca da saída dado que principiaram as dores e não acho o caminho da rua, apercebo-me do alpendre onde a lanterna baloiça na corrente, ao regressar ao baldio via-a na esquina e acalmava, estou a chegar, estou em casa, não me fazem mal já, o quintal fechava-se-me sobre o corpo e escondia-me, nenhuma cólica, nenhum suor, a paz e com a paz a indecisão da madrugada no peitoril

- Nasço não nasço?

Novidades


Hoje é um dia grande para todos os amantes da obra de António Lobo Antunes, uma vez que se encontra já à venda mais um livro do consagrado escritor. O título é sugestivo e apela à leitura, já que é formulada uma pergunta. Será que após a leitura conseguiremos respondê-la?
Segundo a sinopse "a acção decorre no Ribatejo, numa quinta onde se criam toiros. A mãe está a morrer e cada um dos filhos fala e conta a sua história, que se cruza com a história dos outros. Francisco, que odeia os irmãos e espera apropriar-se de tudo quando a mãe morrer; João, o preferido da mãe, pedófilo, que engata rapazinhos no Parque Eduardo VII; Beatriz, que engravidou e teve de casar cedo; Ana, a mais inteligente, drogada e frequentadora dos mais sinistros lugares onde se trafica droga. Há ainda a figura do pai, que vai perdendo ao jogo a fortuna da família, na obsessão de que o número 17 lhe há-de trazer a sorte. E finalmente Mercília, a criada que os criou a todos e que sabe todos os segredos".
A leitura de António Lobo Antunes é sempre uma aventura cheia de desafios, caminhos e trilhos que levam o leitor também aos lugares recônditos da sua alma. Recomendo vivamente.