quinta-feira, março 25, 2010

Receita de Leitura (21)

Dose de Amostra
a elisa visitou-me, vinha sozinha num breve momento em que lhe apeteceu ver-me, naquele dia eu tinha a mariazinha com a pombinha colada num ombro. uma tira de fita-cola segurava ali a pombinha que lhe partira da nuvem, a Elisa reparou e comentou que eu não dava sossego à estatueta, eu até achava que estava a ficar simpático, eventualmente não tão simpático quanto fora por toda a vida, mas mais delicado, uma mariquice que me punha a pensar que a estátua, só pelo esforço de me tentar convencer de que era fonte de uma boa energia, merecia alguma consideração da minha parte, enfim, fazia-me uma mínima companhia, era verdade, era um rosto, até muito bonito, que se punha ali sempre disponível e um pouco expectante para assistir ao que eu fazia do meu tempo, a elisa não trazia notícias nenhumas e, subitamente, dei por mim a dar-lhe conta da vida no lar. foi uma estranha sensação a de entender que, afinal, entregava os pontos à minha filha, fragilizando-me daquela maneira, confiando no seu discernimento para guardar as minhas e as peripécias dos outros velhos, como se lhe pusesse um diário na mão e me reconfortasse na sua confissão.


valter hugo mãe, (2010), a máquina de fazer espanhóis, Carnaxide, Alfaguara, Editora Objectiva.


Composição
A máquina de fazer espanhóis, a obra mais recente de valter hugo mãe, contém princípios activos revestidos de uma actualidade pungente e que reflectem parcialmente a realidade familiar contemporânea: antónio silva, um dos muitos silvas que aparecem ao longo destas páginas, perde laura a companheira e mulher de uma vida, aos 84 anos e é encaminhado pelos filhos com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias para um lar de terceira idade. Na relação com os restantes habitantes, antónio silva adquire uma nova identidade sem perder a sua matriz.

Indicações
Este livro está indicado para todos os amantes de escritas pouco convencionais, prenhes de rebeldias formais e aventuras inesperadas. Alguns leitores manifestaram surpresa ao atestarem a que a idade vetusta de antónio silva não lhe roubara o discernimento. Leitores que buscam em cada página a peça perdida do puzzle que completará a prosa observaram sensações de bem-estar. a máquina de fazer espanhóis é muito bem tolerado por leitores interessados na identidade nacional. Leitores com gosto pela intertextualidade rejubilaram quando o detective Jaime Ramos de Francisco José Viegas e o Esteves da “Tabacaria” de Álvaro de Campos lhes surgiram no lar Feliz Idade.

Precauções
Leitores sensíveis a considerações religiosas devem ler a máquina de fazer espanhóis com restrições. Caso se sintam enraivecer perante a relação peculiar que antónio silva trava com a Virgem de Fátima devem abandonar a leitura de imediato. Os nostálgicos de pontuações convencionais experimentaram ocasionalmente episódios de ansiedade. Os amantes de pontos de interrogação e de exclamação foram vistos secretamente a pontuar a prosa de valter hugo mãe. Deve parar a leitura se as partidas sucessivas e o entardecer da vida lhe escurecerem a alma.

Outras apresentações
Se gostou de ler a máquina de fazer espanhóis aventure-se na restante obra de valter hugo mãe. Ler mata vírus e espanta males. Atreva-se.

domingo, março 21, 2010

Dia Mundial da Poesia


Explicação da eternidade

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

José Luis Peixoto

quinta-feira, março 11, 2010

Sugestões

Mesmo a tempo do Dia do Pai um dos escritores da minha preferência lançou um livro que, estou certa, dará um óptimo presente para a quadra que se aproxima. De José Eduardo Agualusa com o título Um Pai em Nascimento conta-nos em tom autobiográfico as aventuras do nascimento de um pai, acontecimento em simultâneo com o nascimento de um filho. Se estavam com falta de ideias podem sempre aproveitar a sugestão. Caso gostem de ler, nada como lermos experiências alheias para melhor entendermos os outros. Quanto à escrita, não nos vai desiludir quase de certeza.