sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Receita de Leitura (12)

Dose de Amostra
Que querem vocês a estas horas da noite. Os homens deixaram o portão do passal e avançaram, arrastando os pés, para a outra porta. Está alguém a morrer, perguntou o cura. Todos disseram que não senhor. Então, insistiu o servo de deus, aconchegando-se melhor com a manta, Na rua não podemos falar, disse um homem. O cura resmungou. Pois se não podem falar na rua, vão amanhã à igreja, Temos de falar agora, senhor padre, amanhã poderá ser tarde, o assunto que aqui nos trouxe é muito sério, é um assunto de igreja. De igreja, repetiu o cura, subitamente inquieto, pensando que o apodrecido travejamento do tecto tinha vindo abaixo. Sim senhor, de igreja. Então entrem, entrem. Empurrou-os para a cozinha em cuja lareira esbraseavam ainda uns restos de lenha queimada, acendeu uma candeia, sentou-se num mocho e disse. Falem. Os homens olharam uns para os outros, duvidando sobre quem deveria ser o porta-voz, mas estava claro que só tinha realmente legitimidade aquele que havia dito que ia ouvir o que se estava dizendo no grupo onde se encontravam o comandante e o cornaca. Não foi preciso votar, o homem em questão tinha tomado a palavra. Senhor padre, deus é um elefante.

José Saramago, (2008), A Viagem do Elefante, Lisboa, Caminho.


Composição
A Viagem do Elefante é o mais recente livro de José Saramago, escrito em condições de saúde muito precárias, e conta a aventura de um presente insólito que foi oferecido a Maximiliano da Áustria pelo Rei D. João III de Portugal: um elefante. Entre aventuras e desventuras a narrativa desenrola-se em torno da viagem encetada entre Lisboa e Viena.

Indicações
A leitura de A Viagem do Elefante recomenda-se a indivíduos que apreciam livros escritos num estilo peculiar e que apreciam prosas bem urdidas carregadas de metáforas e cenários imponentes de gentes diversas. Leitores que se sentem rejeitados pela prosa de José Saramago e que experimentam a solidão literária de não poderem usufruir das obras do laureado escritor português sentiram melhorias consideráveis na sua auto-estima, após constatarem que A Viagem do Elefante é de leitura rápida e acessível.

Precauções
A Viagem do Elefante está altamente desaconselhado aos guardiães zelosos de registos convencionais. Indivíduos com visão cinematográfica observaram pontualmente episódios delirantes de cenários soberbos. Foram reportados ataques de cólera em indivíduos sem capacidade de apreciar prosas idiossincráticas e críticas sociais e religiosas acutilantes. Os zelosos protectores das pontuações tradicionais devem ler este livro com muitas reservas. Caso se sintam ruborescer de fúria com a ausência de pontos de interrogação ou maiúsculas sem serem precedidas por pontos finais, de interrogação ou de exclamação devem descontinuar a leitura de imediato.

Posologia
Indivíduos excluídos da escrita saramaguiana devem iniciar a leitura com a maior brevidade possível para um efeito imediato de bem-estar. A Viagem do Elefante deve ser lido sem restrições e de mente aberta para melhor fruição.

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