quinta-feira, junho 11, 2009

Receita de Leitura (16)

Dose de Amostra

A monumental arcaria de pedra e cal se oferecia a eles, com seus quase 300 metros de extensão a perder na noite, rumo ao morro do Desterro. Apesar da escuridão, Pedro e Leonardo podiam ver a garganta de amuradas, abrigando o cano de argila que trazia a água do rio Carioca. Os meninos saltaram sobre a manilha e correram ainda mais depressa, a 18 metros do chão da Lapa. Na disparada, foram deixando para trás, lá embaixo, a rua dos Arcos, cortada pela rua do Lavradio, e a de Mata-Cavalos. Visto de cima, o crepitar das velas acesas dentro das casas fazia a cidade parecer uma comunidade de pirilampos. Mas eles não tinham tempo para olhar, só para correr — era melhor nem olhar —, cuidando para não escorregar do cano e esperando que os soldados do Vidigal, cujas botas ouviam à distância, desistissem da perseguição.
Bem no meio dos Arcos, sobre a rua das Mangueiras, pararam por um instante, para apurar os ouvidos, e sentiram que o ruído das botas inimigas diminuíra ou silenciara — como se os soldados tivessem feito alto para descansar ou dado meia-volta. Mas, e se fosse um truque? E se apenas tivessem tirado as botas para correr melhor?

Ruy Castro, (2008), Era no tempo do Rei, Alfragide, Asa.

Composição
Era no tempo do Rei, do escritor e biógrafo brasileiro Ruy Castro, conta a história de dois meninos no Rio de Janeiro, em 1810, dois anos após a chegada da corte portuguesa ao Brasil. Pedro e Leonardo, duas crianças de doze anos, vivem aventuras e peripécias, vagueando pela cidade. Em pano de fundo assiste-se ao retrato vívido e pululante de uma cidade subitamente capital do Reino e à história com as Guerras Napoleónicas, as lutas pelo poder e a indispensável intriga.

Indicações
Recomenda-se a leitura de Era no tempo do Rei aos indivíduos com gosto por prosas coloridas, fluentes e escorreitas. É muito bem tolerado por quem se interessa por esta parte da história em que portugueses e brasileiros se encontram no calor dos trópicos e mais uma vez se miscigenam. Leitores obcecados com a veracidade histórica observaram episódios que podem variar da ansiedade à cólera.

Precauções
Era no tempo do Rei está altamente desaconselhado aos historiadores incapazes de olhar a vida através do caleidoscópio da literatura. Não se recomenda a leitura a indivíduos incapazes de ficcionar a História e de ver em Pedro o futuro Imperador do Brasil. Caso dê por si rodeado de compêndios de História na senda de Bárbara dos Prazeres deve descontinuar essas leituras e acreditar no escritor “Nem tudo o que aqui se leu aconteceu – mas podia ter acontecido”. Indivíduos com forte apego às descrições excitantes observaram um desejo incontrolável de viajar no tempo e regressar ao Rio de Janeiro do século XIX.

Outras apresentações
Caso tenha sentido uma franca melhoria com Era no tempo do Rei, aventure-se noutras prosas do autor, como a biografia de Carmen Miranda, a história da Bossa Nova, Chega de Saudade, ou ainda Carnaval no Fogo sobre o Rio de Janeiro. Ler Ruy Castro é sempre um prazer. Se aprecia a temática, experimente Império à Deriva de Patrick Wilcken, a História como um romance.

Sem comentários: