SOMOS PORTUGUESES. Pois somos. E sendo um povo de uma nação velha de mais de oitocentos anos continuamos a ser uns incorrigíveis provincianos. Talvez por sermos tão velhos.
Não há nada nesta vida, por mais banal, que nos não faça nascer ao canto do olho uma pequenina lágrima, represente isso a resposta a um elogio, a uma escondida vaidade ou até a um longínquo e temo aceno.
Habituámo-nos a ser ignorados, vilipendiados, e a levarmos a discussão dos problemas que assolam a nossa existência, ou as comemorações das alegrias que amiúde a amenizam, como verdadeiras lutas sem quartel, fruto de rivalidades escondidas, de invejas reprimidas e, muitas vezes, de complexos vários, que tendo origem nos momentos mais distantes do passado individual acabam por só se revelarem anos volvidos sob a forma de manifestações colectivas.
E assim em quase tudo o que diz respeito a Portugal e às suas gentes, às vitórias e às derrotas em que quantas vezes somos involuntariamente envolvidos.
Em séculos passados foram os Descobrimentos, como antes tinha sido a formação de Portugal ou a reconquista cristã da Península que justificaram as celebrações. Noutras ocasiões também tivemos festejos para comemorar vitórias morais. Em1966 foi um terceiro lugar num campeonato do mundo de futebol que serviu para nos sentirmos como heróis do universo. Fomos quase campeões do mundo. E, além do mais, já tínhamos o Camões, o Gama e o Afonso de Albuquerque, o Santo António de Lisboa, que os italianos nos roubaram e agora todos dizem o Magalhães, a quem nós não dávamos emprego e que depois de ter ficado famoso a trabalhar para os castelhanos quisemos gritar aos quatro ventos que afinal era dos nossos, e tantos outros.
Enfim, hoje também temos novos heróis. Alguns foram-nos legados pelo 25 de Abril. Outros, que já vinham do tempo da outra senhora, foram reciclados e adaptados à democracia, como o ministro Veiga Simão. E até houve alguns pides, legionários e membros, da extinta Mocidade Portuguesa que alugaram novas convicções para se safarem. Todos eles passaram a integrar a galeria de personalidades mais ou menos brilhantes, mais ou menos obscuras, que fizeram e fazem a nossa história, mas todas elas são muito lusíadas, não sendo por isso que deixamos de nos orgulhar dos nossos heróis e dos seus êxitos.
E, às vezes sem razão, continuamos a orgulhamo-nos por entendermos que são eles que nos definem, que contribuem para a divulgação do nosso espírito e da nossa maneira de estar na vida.
Desta vez foi o José Saramago que serviu de pretexto para a euforia nacional. Infelizmente, a atribuição do Nobel àquele escritor não foi acompanhada de uma retumbante vitória futebolística sobre a selecção romena, na jornada de qualificação para o europeu de futebol, nem da transferência de mais um jogador para o estrangeiro por valores astronómicos, pois que de outro modo a festa teria sido mais rija.
Não que _ Saramago não tivesse direito ao seu Nobel; que, ao que parece, também é nosso, de Lanzarote, de Madrid, da Pilar dei Rio, dos seus editores, de Fidel Castro, das literaturas ibero-americanas, da Península, de Jorge Sampaio, de Fernando Gomes, da Força Aérea Portuguesa, do homem da banca dos jornais que vendia o Diário de Notícias quando o agora tolerante escritor andava por lá a sanear os reaccionários, do irreal D. Duarte, que apesar das blasfémias também ficou satisfeito, de Carvalhas, que exulta de cada vez que um comunista ganha o Nobel, dos contribuintes portugueses, dos pobres de Calcutá e dos livreiros que vão ganhar rios de dinheiro. Escusava-se era de embarcar nesta emulização colectiva do Saramago e da sua obra, por muito meritória que seja e, discutivelmente, o é.
Pode ser que não esteja a ver as coisas pelo prisma correcto, mas não sendo eu capaz de alinhar na patrioteira que ciclicamente se apodera de todos nós, tenho alguma dificuldade em perceber o exagero de certas manifestações.
Acho perfeitamente natural que os escritores portugueses, os poetas, os trabalhadores da língua, o país em geral, queiram homenagear o José Saramago. Consta que foi um trabalhador incansável durante toda a sua vida, que lutou pelo que sempre acreditou, do mesmo modo que alinhou com os comunistas nos tempos áureos do PREC e depois da queda do Muro de Berlim, o que apesar do seu talento e de demonstrar alguma coerência poderá não ter servido para prestigiar as letras portuguesas, a sua inteligência e o nome de Portugal. Até aí tudo bem. Goste-se ou não se goste, é preciso dar o seu a seu dono.
Contudo, creio ser perfeitamente descabido que o Presidente da República, aquele que devia ser o primeiro a manter a serenidade, a calma e a sensatez, tenha resolvido, como bem sublinhou o escritor no agradecimento, prometer a atribuição de uma condecoração apenas reservada a chefes de Estado, a qual, para já, ficou dependente de uma alteração legislativa. Ou que um jacto da Força Aérea tenha ido a Madrid buscar o escritor. Mesmo admitindo-se que isso seja mais razoável do que seria um avião fazer uma escala propositada para ir buscar a mulher de um ministro que foi às compras.
É claro que ele agora é o maior, embora muito provavelmente a maioria daqueles que se reclama seu leitor não perceba o alcance do que ele escreve nem tenha paciência para levar a leitura de um dos seus livros até ao fim. Isso são coisas que fazem parte da iliteracia nacional.
Que tantas autarquias reclamassem um escritor como seu não constitui motivo de alarme. Isso não deve importunar demasiado Saramago nem preocupar a generalidade dos cidadãos. Dos autarcas que temos não virá grande mal. São na sua maioria inofensivos e querem o bem das suas gentes. Apesar de se dizer de alguns que são analfabetos e corruptos.
O grave é que o Nobel da Literatura já cá cante do mesmo modo que cantaria uma vitória num hipotético campeonato do mundo de futebol. No caso dos futebolistas ninguém estranharia que eles fossem passeados pelo país como verdadeiros troféus, habituados como estão a serem negociados e exibidos para deleite da plebe pêlos estádios desse mundo. Tenho pena é que o Nobel acabe também por servir apenas para isso. Passear, Saramago pelo país, oferecer-lhe uns almoços e jantares e prendá-lo com medalhas e condecorações não é garantia de que o país passe a ler mais e melhor. Além de demonstrar pequenez e amor ao fútil.
Mesmo desvalorizado, excessivamente politizado e com critérios de atribuição que por vezes roçarão o grotesco — essa é a minha opinião—, o Nobel ainda é um prémio cuja atribuição a um português — compadrios à parte — não pode deixar de nos honrar. Lamentável é que estas ocasiões sejam o registo para a posteridade de toda a nossa pindériquisse, de toda a nossa falta de tino, de comedimento e da humildade que constantemente apregoamos.
E por falar em humildade, custa-me aceitar a vaidade com que o escritor afirma a sua, participando nas manifestações mais sinceras do mesmo modo que participa nas mais serôdias. Não porque aquelas sejam mais genuínas e estas mais institucionais; mas apenas porque se as instituições e os políticos não têm o distanciamento necessário em relação à feliz graça para evitarem o inqualificável espectáculo gerado pela simples atribuição de um prémio, é disto mesmo que se trata, eu esperaria que um escritor da estirpe de um Saramago não se deixasse envolver pelas manifestações de grandiosidade com que o regime resolveu brindá-lo.
Dele não se exige que reparta o prémio, embora a nós, eternos pelintras, isso possa parecer estranho. E também não se exige que de hoje em diante deixe de ser quem sempre foi, que se mude para Portugal e renegue as suas convicções. Muito menos exigir-lhe que passe a fazer discursos gongóricos para se fazer ouvir, agradar ao poder político ou pregar ad eternum a sua doutrina da miséria planificada. Deus nos livre dessa sina.
Mas parecer-me-ia natural que os seus leitores lhe exigissem algum distanciamento, de modo a que ele não se deixasse comover pelas homenagens. Acima de tudo seria bom que fosse capaz de manter a lucidez, evitando a sua perversa emulização, ao contrário do que fizeram alguns dos seus camaradas e por muito que isso lhe custe.
O Nobel há muito tempo que deixou de definir um escritor. E nunca definiu um homem. Mas pode ser que um dia um homem que também seja escritor venha a defini-lo. Antes que ele se extinga, o dinheiro acabe ou, quem sabe, os prémios lhe dificultem a escrita. Conviria fazê-lo. A bem da literatura e dos que merecendo um Nobel nunca foram contemplados com a taluda.
Estaria então justificada a sua não atribuição a todos os que cegaram com os olhos postos na Humanidade, de bolsos vazios e sem conhecerem Estocolmo.
Sérgio de Almeida Correia, dos blogues Delito de Opinião e O Bacteriófago
Texto publicado em 30 de Outubro de 1998,
no rescaldo da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago.
2 comentários:
Será polémico, o texto, mas hipócrita não é. E isso é coisa que só se pode saudar.
Ora bem, Adriano, eu sou pela diversidade. Embora não concorde com tudo o que o Sérgio diz, gosto de palavras frontais quando não são ofensivas, como é o caso.
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