Ter nascido e crescido à vista e à sombra de um monumento como o Convento de Mafra alguma influência há-de ter na pessoa que sou e no modo como vejo a vida. Eu já sabia muita coisa sobre a história do colosso, tal como a aprendi na escola, nos livros, nos velhos. Sabia que tinha sido construído por capricho ou vontade de um rei que eu considerava ser da minha terra. Sabia das histórias de fantasmas como a do capitão-sem-cabeça e das ratazanas gigantescas nos esgotos, ameaçando invadir a vila. Sabia chamar "musaninhos" às salas com janelas ovaladas lá no alto. Sabia o que eram escadas de caracol quando subia à torre para ver um amigo tocar os carrilhões. Sabia histórias dos santos de pedra, com pés enormes para os meus olhos de menina de metro e pouco. Havia os amigos que moravam "lá dentro" e os que eram cá "de fora". Conhecia cantos escusos que não eram dados a saber a visitantes. Ficaria horas a falar do tempo em que eu e o convento nos entendíamos, como menina e casa grande que lhe escuta os segredos.
Um dia apareceu um livro que pôs lá dentro o meu convento e o levou a correr mundo, Chama-se “Memorial do Convento” e foi escrito por José Saramago, o escritor que eu já admirava muito desde que lera “Levantados do Chão”. Fiquei tão orgulhosa. Li o livro com encantamento, com pressa. Eu sabia que a minha casa grande um dia havia de ser falada. A casa e os homens que a fizeram e que por ela sofreram e morreram. Logo que a oportunidade surgiu, corri ao encontro do autor. Precisava de lhe dizer: "Gostei que me tivesse ensinado a ver Mafra sem o convento. Agora olho para o monte antes dele e consigo pensar-me doutro modo". Foi mais ou menos assim, com um pequenino nervoso, que lhe disse, enquanto ele se preparava para me autografar o livro. As mãos belíssimas de Saramago detiveram-se, levantou a cabeça, fixou-me por um segundo, sorriu com aquele seu jeito de sorrir sem lábios, e escreveu: "Para a Licínia que é de Mafra". Se alguma dúvida tivesse, Saramago ter-me-ia dado a certeza de que a esta terra pertenço.
Texto e fotografia de Licínia Quitério
Poetiza e natural de Mafra
Autora do blogue O Sítio do Poema
Autora do blogue O Sítio do Poema
3 comentários:
Belo texto Licínia!Gostei muito!
O meu primeiro Saramago foi o memorial, oferecido pela minha mãe quando fiz 18 anos... a partir daí tornou-se um autor de eleição. O meu Memorial do Convento, com uma dedicatória muito especial, está com um colega de liceu há muito desaparecido...
Fico à espera do teu 'naco de prosa saramaguina', Patrícia.
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