segunda-feira, novembro 29, 2010

Estar ali e já não estar

Morte. Fim do caminho. Passagem para um outro estádio. Ordem natural das coisas. Lei da vida. Momento fugaz em que os olhos se encerram para todo o sempre, o corpo se abandona ao sono metafórico de silêncios infindáveis, a alma se eleva, para alguns, e se desprende para mais aventuras etéreas, renascimento ou apenas, como dizia Saramago “a diferença entre estar e já não estar”. Seja qual for a acepção e o significado da morte é consensual que a morte é sempre um fim e um fim que acarreta consigo um início. Depois da morte há uma outra vida. Sempre. Rituais que se desaprendem e outros que se adquirem por via da ausência irreparável do corpo. Aprendizagens lentas a espaços em branco e vozes que ecoam apenas na memória. Lugares vazios que surpreendem os que sobrevivem e os cutucam no ombro nas mais inusitadas situações, tão comezinhas por vezes, e, contudo, sempre tão prenhes desse espaço dolorosamente em branco que o abandono do corpo e a entrega do alma ao criador significa. “Estar e já não estar”.
A morte de um escritor representa uma morte dupla para o leitor muito além da dicotomia “estar e já não estar”. Se por um lado representa a morte do ser humano e de um ser humano, o homem público, e não raras vezes endeusado pelo culto icónico da personalidade, seguidores que derramam lágrimas pungentes pelo súbito “estar ali e já não estar”, por outro, tem como consequência, a morte dos livros, a mão que deixa de desenhar letras e alimentar a compulsão do leitor. O fim da criação de universos e tramas para depois os derramar em palavras e mundos cuidadosamente gerados pelo talento genial de escrevedores de universos constitui a pena máxima, uma ausência irreparável. A morte de um escritor é sempre uma tragédia para os seus leitores. Tal como os de que gostamos e que deixam atrás de si um rasto de absurda ausência, os escritores espalham um silêncio doloroso de novas letras e universos e deixam órfãos os seus leitores.
Este Novembro foi pois um Novembro mais triste. Não houve voz dissonante, crítica nem fúria. Não houve a procura incessante do próximo livro, a espera como um nervoso fininho na alma, e o prazer indizível de ter mais um Saramago entre mãos e esperar mais um belo naco de prosa, um excerto polémico a agitar mentes ou uma estória contada seu estilo ímpar. E ouviu-se um enorme silêncio branco que como um manto se abateu sobre os leitores. Sós e órfãos. Estar ali e já não estar.


Caricatura de Hermínio Felizardo a quem agradeço a autorização para publicação.

4 comentários:

Felizardo Cartoon disse...

pensamento arrebatador e extraordinariamente bem escrito!

Hermínio Felizardo

Licínia Quitério disse...

Belíssimo,sensível texto, Leonor.
Pela morte do escritor eu choro várias mortes. Um apontamento pessoal que peço licença para deixar. Nunca fui capaz de acabar de ler "As Intermitências da Morte", porque alguém muito querido, como irmão que foi, estava a lê-lo quando já se pressentia a sua morte anunciada para breve. Não sei se o acabou de ler. Ainda discutiu comigo algumas passagens e acho que ambos sabíamos do que falávamos, rindo como sempre fazíamos.
São muitas mortes numa só, quando morre um escritor. Bem verdade, Leonor.

Um beijo.

LBarros disse...

Obrigada, Hermínio, também pelo cartoon. Bem-vindo!

Obrigada, Lícinia. É um facto que a morte do escritor nunca é apenas uma morte. Li as Intermitências logo a seguir à morte do meu pai. Talvez por isso me seja tão caro.

Anónimo disse...

Estar ali e já não estar...faz-me lembrar a morte no João Mau-tempo no levantado do chão. A melhor morte que já me foi dada conhecer pela arte.
A morte do João Mau-tempo.