terça-feira, novembro 16, 2010

Fábula do Convento

Republicano, o meu avô materno era o homem de caça de Dom Carlos. O rei chegava a Mafra e exigia «o seu Quintas» que conhecia, como nenhum outro, os pobres bichos da Tapada e os seus ardis. Fiel ao seu ideário, o meu avô jamais lhe chamou «Vossa Majestade». «Senhor Dom Carlos» era o mais que lhe arrancavam, e o «Vossemecê» vinha a seguir. Não se curvava para o beija-mão, afirmando que apenas beijara a mão da mãe. O rei, porém, passava a vida a reclamá-lo.
Esta história corria na família, a par com a das origens escocesas. A minha mãe chorava quando ouvia tocar gaita-de-foles, o meu pai não deixava de sorrir à evocação de um rei que tolerava um republicano no seu séquito e se deixava assim tratar - só porque queria obter bons resultados nas caçadas. A criança que eu fui ouvia isto e o Convento era só pedra e memória.

Pelos finais dos anos quarenta houve um tremendo surto de prisões. Por certo as criaturas da polícia política não tinham em logística a competência de que em tortura davam tantas provas. Alguns dos presos, entre os quais meu pai, tiveram de esperar pelo transporte e foram encerrados no Convento (na masmorra do sul, para ser precisa), onde, entre podridão e ratazanas, ficaram essa noite. O episódio chegou ao meu conhecimento, vindo nem sei de onde. São as vozes do tal vento que passa. Não mo contou meu pai que velou sempre para me poupar ao medo. O facto é que, mais de meia década depois, eu ainda me afastava dos companheiros de brincadeira e ia espreitar para baixo, semi-deitada sobre vastidão do muro. Imaginava os meus heróis na escuridão e, confundindo facilmente as fantasias, pensava nos cenários medievais. O Convento era só pedra e terror.

Nós, crianças de Mafra, não podíamos ser acusadas de xenofobia. Todo o recém-chegado se via, de algum modo, levado em ombros pela nossa curiosidade. Os meninos do circo, então, brilhavam de uma espécie de brilho natural, na sua qualidade extra-terrestre que os dotava de um corpo plástico e invulnerável. Eles deslizavam entre as balaustradas fazendo admiráveis contorções e, ao partirem, deixavam-nos num estado de plena insensatez, cheios de feridas. Um outro grupo, quase tão efémero como o do circo, era o dos filhos de militares. A ala sul do Convento albergava a Escola de Infantaria e os andares superiores haviam sido adaptados para habitação. Capitães e majores ocupavam-nos com as suas famílias, por uns tempos. Assim, pois, convidados pelos novos amigos, que pareciam sazonais como andorinhas, nós tínhamos acesso aos corredores, à descida e subida das escadas onde sentiam frio os soldadinhos e onde, às vezes, tratávamos de soltar borboletas para que o quartel se embelezasse um pouco. Ao som de uns batimentos compassados de origem misteriosa dividíamo-nos entre os supersticiosos, que ainda acreditavam num Capitão-sem-Cabeça a cumprir penitência no lugar, e os positivistas que troçavam da palidez e da paralisia que acometia alguns e a mim entre eles. Claro que, estimulados pelo medo ou pela auto-estima de o enfrentar, fugíamos às vezes uns dos outros com grande risco de ficarmos todos perdidos naquele espaço desumano. O Convento era pedra e desamparo.

Do Convento emanava também uma luz negra, a da grande Basílica com os seus mármores, odor a cera e incenso, e os seus ecos. Havia em Mafra uma mulher perturbadora que vestia de roxo até aos pés e era apupada pelo rapazio. Parecia-me, pois, que aqueles santos, vergados sob as dobras dos cetins, não estavam tristes, mas preocupados com o facto de uma entre eles ter saído do seu altar e vaguear, murmurando, pela vila. O que mantinha os outros imóveis nos seus cantos era menos a fé que a disciplina. Porque a mulher rezava o tempo todo mas mostrava uma forte irrequietude. Os meus amigos não me acompanhavam naquelas excursões cerimoniais e a minha mãe, depois de um primeiro pânico, habituou-se a ir à missa procurar-me. Eu via em tudo aquilo uma tragédia e uma narrativa. Havia dor. Porém, algo falava de uma outra história que ainda estava por contar, a de quando aqueles santos todos se cansassem da sua condição inanimada. Supunha eu que os cânticos e as velas, a música do órgão, os tapetes feitos com muitas flores na Primavera, funcionavam como um desafio a que eles acabariam por ceder. Entretanto, expulsaram-me dali. Filha de um comunista, carregando a sujidade do pecado original, não podia pisar o chão da igreja. Fiquei de fora. Os santos não se libertaram. O Convento era apenas pedra e ferida.

Não é vingança o tema desta fábula; é, sim, muito simplesmente, redenção. E como podem pedra e História, terror e desamparo e ferida, redimirem-se, se tudo entra na carne e já não sai? Pois podem, se os tocar a mão de um homem. Pois podem, se os olharem os seus olhos. Assim se fez. E aquilo que esmagava, o pedestal que suportava a igreja e a monarquia, a ditadura e o exército, abateu. Transformaram-se, o peso e a espessura, e transformou-se a própria duração. Continuamente vemos o trabalho que levanta do chão aquele Convento, e vemos os amantes, os que voam. Como um livro - que mede pouco mais do que um palmo - cobriu um gigantesco monumento é a questão que nos devemos pôr de maneira a ficarmos optimistas. Se o Convento ganhou o nosso afecto graças àquilo que nunca aconteceu a não ser nas palavras de um escritor, é porque a humanidade se comove mais com o sonho criador do que com reis.


Hélia Correia, escritora

2 comentários:

Adriano disse...

Memórias comuns a muitos de nós, nados e criados à sombra do convento, e o sonho, que a todos nos devia comandar. Belo texto, bela homenagem. Obrigado.

Licínia Quitério disse...

Um belo texto em que nos revemos, nós os que lhe conhecemos a sombra e os assombros. Saramago nos acrescentou o sonho.
Permitam-me que, por aqui, mande um beijo à Hélia que nos vai continuando o sonho.