quarta-feira, novembro 17, 2010

Memorial do Convento: vinte e cinco anos de Viagens


            A fundação José Saramago celebra, durante o mês de Novembro, os 85 anos do escritor e os vinte e cinco da publicação de Memorial do Convento que ganha uma edição especial. Com mais de um milhão de leitores em Portugal (vai na 43ª edição), traduzido em mais de trinta línguas, este monumento de palavras vai viajando no espaço e no tempo despertando novos estudos, outras leituras, num encantamento sempre crescente. Associando-me ao evento, proponho aos seus leitores umas notas sobre o tema da Viagem, abundantemente e de modo diverso presente no romance.

 A Odisseia Homérica (s. VII a. C?) é, a seguir à Bíblia, o livro que mais influência terá exercido, ao longo dos tempos, no imaginário cultural do Ocidente.

           “Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
             Depois que de Tróia destruiu a cidadela sagrada.” (C.I.vv.1-2)

            Assim começa a Proposição do poema, onde o herói Ulisses se define através de dois epítetos: polútlas (“ o que muito suportou”) e polúmetis (“o dos mil artifícios”).

            Retido na ilha de Ogígia pelos amores de Calipso, Ulisses passa os dias na praia a olhar para o mar, lavado em lágrimas, atormentado pela nostalgia (nóstos) da sua pobre e rochosa Ítaca, cheio de saudades da mulher Penélope e do filho Telémaco.

            No Canto XXIV, o último, o poema narra a célebre descida ao mundo dos mortos, a catábase, onde o herói encontra o pai Laertes e outros companheiros da guerra de Tróia.´

            “( …) Assim falou: e uma nuvem negra de dor se apoderou de Laertes.
            Com ambas as mãos agarrou em terra misturada com cinza
            e atirou-a por cima da cabeça, gemendo incessantemente.
            Comoveu-se o coração de Ulisses e nas narinas sentiu
            uma dor lancinante, ao ver naquele estado o pai amado.
            Lançou-se a ele, com beijos e abraços, e disse estas palavras:
            Eu próprio sou aquele por quem perguntaste, ó pai.
            Cheguei no vigésimo ano à amada terra pátria.
             Pára de te lamentares, deixa agora o pranto lacrimejante.
            Tudo te direi, pois neste momento não há tempo a perder.
            Matei todos os pretendentes no nosso palácio,
            Vingando assim os ultrajes cometidos e as más acções.” (C.XXIV, vv. 315-326). [1]
           
            Inspirando-se em Homero, Vergílio, o poeta mantuano, compõe a Eneida (s. I a.C.), onde canta a viagem do herói troiano Eneias, de Tróia para Itália, para aí, por missão divina, fundar uma nova Tróia, Roma. O poema glorifica o império florescente da época de Augusto e o Povo Romano.

            “ Arma virumque cano,Troiae qui primus ab oris
               Italiam fato profugus Laviniaque venit
               Litora…) (I. 1-3)
            “ Canto as armas e o varão, o primeiro que, das costas troianas,
               Perseguido pelo destino, aportou à Itália e às praias de Lavínio (…)

No Canto VI narra-se a descida do “ pius” Eneias aos infernos“ ( ad  inferos )”, onde, percorrendo o reino dos mortos, encontra,  nos “ lugentes campi”  – campos das lágrimas, - a Fenícia Dido, rainha de Cartago, e nos “loci  laeti” – campos elísios - o seu pai Anquises.
“ (…) Não longe daqui, estendendo-se por todo o lado, estão pateentes
Os Campos das Lágrimas; é esse o nome que lhes dão.
Aqui, os que uma dura paixão conssumiu com uma cruel  doença,
Ocultam-nos secretas sendas e, em volta, encobre-os
Um bosque de mirtos; nem na morte a aflição os larga.(…)
Entre elas, a fenícia Dido, de há pouco ferida,
Vagueava num vasto bosque; assim que chegou perto delas,
O herói troiano entre sombras a reconheceu,
Obscura, tal como se vê ou julga ver surgir a Lua
No começo do mês, entre as nuvens,
Deixou cair as lágrimas, e falou-lhe com a doçura do amor:
“ Dido infeliz, é então verdade a nova que me chegou,
De que sucumbiras, e como ferro puseras termo à vida’?
Ai! Fui eu a causa da tua morte? Pelos astros juro,
Pelos deuses supremos, e, se alguma fé existe nas profundezas da terra,
Foi contra vontade, ó rainha, que me afastei das tuas plagas.
Mas as ordens dos deuses, que agora me forçam a caminhar
Por entre estas sombras, por lugares de áspero degredo e pela noite profunda,
Me coagiram ao seu mando; nem podia pensar
Que tão grande dor te causasse a minha partida.
Detem os teus passos, e não te furtes à nossa vista´
De quem foges? È a última vez que o destino me consente falar-te”.
Com tais palavras, Eneias contava suavizar o seu ânimo abrasado,
De olhar turvo, enquanto derramava lágrimas.
Ela, de costas voltadas, tinha os olhos fixos no solo,
E não mexeu mais o rosto, quando ele começou a falar,
Como se estivesse ali uma dura pedra ou um mármore marpésio.
(…) No fundo de um vale verdejante, o pai Anquises
Passava em revista, atento, as almas reclusas, que para a luz superna
Haviam de partir e, por sinal, verificara o número completo
Dos seus, e dos seus caros netos, o fado e fortuna
Daqueles homens, o seu carácter e os seus feitos.
Logo que viu Eneias dirigiu-se ao seu encontro pelo relvado fora,
Estendeu alegremente ambas as mãos,
E, com a face banhada em lágrimas, saíram-lhe da boca estas palavras:
“ Chegaste enfim, e a piedade com que teu pai contava,
Pôde vencer as escarpas do caminho? Posso, ó filho,
Teu rosto contemplar, ouvir a conhecida voz e responder-lhe? [2].

Mais tarde no sec. XIV, o poeta florentino Dante escreve A Divina Comédia, poema que é um marco significativo na Literatura Universal. Trata-se de uma viagem simbólica pelo Além, onde o poeta guiado por Vergílio percorre o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Na primeira parte, o poeta irá atravessar os nove círculos do Inferno e ver aí as tormentas que sofrem os pecadores e encontrar a sua amada Beatriz. Durante a viagem caminham num crescendo de horror, numa atmosfera cada vez mais alucinante.

         “(Ó alma tão cortês e mantuana,
de quem no mundo a fama inda perdura
e de durar quanto ele já se ufana,
o amigo meu, que o não é da ventura,
nessa praia deserta ei-lo impedido
e atrás volveu e o medo o desfigura;
e eu temo já se encontre tão perdido,
que tarde a socorrê-lo vá levada,
por quanto cá no céu já tenho ouvido!
Ergue-te pois e com palavra ornada
E o mais que for mister a se salvar,
o ajuda, a fim que eu seja consolada..
Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar;
Do lugar venho a que voltar pretendo
e amor me move, que me faz falar.” (C.II, vv.57-72) [3].

 Estes “loci símiles”- passagens semelhantes- intertextuais, podem também verificar-se em Memorial do Convento. Entre outras, aí se narram duas viagens fantásticas: o voo da passarola e a peregrinação de Blimunda “ romeira e peregrina” por Portugal inteiro em busca de Baltasar que, acidentalmente, levantara voo na passarola. (cap.XXV) .
O voo da passarola, possibilitado pelo mágico dom de Blimunda que recolhe as “vontades” individuais convertendo-as em força colectiva, torna realidade o sonho utópico do Padre Bartolomeu, sonho que é também o da humanidade. Este episódio aparece carregado de mensagem ideológica, a saber: o ser humano equipara-se a Deus.
(…) O padre veio para eles e abraçou-se também, subitamente perturbado por uma analogia, assim dissera o italiano, Deus ele próprio, Baltasar seu filho, Blimunda o Espírito Santo. E estavam os três no céu, Só há um Deus, gritou, mas o vento levou-lhe a palavra da boca.” (p. 197).
“ (…) Só há um Deus, agora quer Baltasar saber, Dou ao fole, primeiro o sublime, depois o trivial, quando Deus não sopra, tem o homem de fazer força.” (p. 199)
O voo da passarola demonstra ainda que reunindo as “ vontades” de muitos, é possível transformar o sonho em realidade:” (…) o éter, dêem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes, antes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus respira, vive dentro dos homens e das mulheres (…) mas o éter não se compõe das almas dos mortos, compõe-se, sim, ouçam bem, das vontades dos vivos (…) é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira.” [4] (pp.123-124).

São nove anos, o tempo que Blimunda procura Baltasar e são nove os círculos do Inferno, na Divina Comédia.
O caminho de Blimunda é igualmente difícil e doloroso: “Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer…”
Blimunda atravessa o rio em direcção a Lisboa “ na última barca que aproveitava a maré”, sendo explícita a alusão ao barqueiro Caronte que fazia a travessia do Aqueronte para o reino das sombras.” Caminhava no meio de fantasmas, de neblinas que eram gente. Entre os mil cheiros fétidos da cidade, a aragem nocturna trouxe-lhe o da carne queimada.” (p.357).

Na viagem de Dante dá-se uma gradual ascensão em direcção ao Paraíso, para aí ter a visão final de Deus.
“ Nesse caminho pouco luminoso
   entrámos por voltar ao claro mundo;
   e sem cuidar de ter algum repouso.,
   subimos, antes ele e eu segundo,
   tanto que eu vi enfim as cousas belas
   que tem o céu, por um buraco ao fundo;
   e saímos voltando a ver estrelas.(C.XXXIV, vv. 133-139)

 No Memorial do Convento, Blimunda queda-se na terra, a ela pertence e aí recebe a vontade do seu amado.
“ Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.” (p.357).

O encontro final de Baltasar-Blimunda representará o culminar duma aliança não com a divindade, mas aliança entre dois seres humanos que, em mútuo amor, constroem uma vida terrena, digna e feliz.


Novembro de 2007
O prof. Ismael Gonçalves


1-       In  Odisseia , tradução de Frederico Lourenço
2-      InAntologia da Cultura Latina”, de Maria Helena da Rocha Pereira
3-      InA Divina Comédia , tradução de Vasco da Graça Moura
4-      InMemorial do Convento , 1ª edição

Texto enviado pelo professor Ismael Gonçalves,
professor de Português e Latim na Escola Secundária José Saramago

2 comentários:

Adriano disse...

Obrigado, Ismael, por este teu trabalho.

Licínia Quitério disse...

Belo trabalho, a merecer ampla divulgação.