quinta-feira, novembro 11, 2010

MILU NA AZINHAGA, TERRA NATAL DE JOSÉ SARAMAGO (1)

PROJECTO: MILU, scilicet, MOTUS – INCOMPARABILIS – LUCIDUS – UNUS

RESUMO: Clube motard de propensão gastronómico-rodoviária. Enfim, um grupo de gandas malucos que anda pr’aí a empanturrar-se e a dar cabo do coirão por uma causa perdida.

PÚBLICO-ALVO: Por ora, no grupo há só professores, uns quantos no activo e outros menos, já aposentados. De comum, além do gosto pelas meninas de duas rodas e motor adulto e do facto de leccionarem na Escola Secundária José Saramago, têm o hábito de conduzir à defesa, diante do emaranhado de despachos, decretos e reformas educativas caídos da infernal tutela ministerial.

PONTO DE ENCONTRO: Portão da Escola Secundária José Saramago, por norma às 9h00 do sábado aprazado.

ÁREA DE ACÇÃO: A partir de Mafra, para Oeste ou para Este ou para Norte ou para Sul. Saídas ao calha acontecem, por vezes. Uma ida ao Cabo Norte e outras maluqueiras estão cogitadas, mas a crise aconselha alguma contenção.

OBJECTIVOS: Dar umas curvas em contexto real, de acordo com regras consabidas – Abrandar, Olhar, Inclinar, Acelerar e Pensar no Almoço.

AUTO-AVALIAÇÃO: Não se sabe por que “causa perdida” andamos por aí “a dar cabo do coirão” em cima de uma moto. Perdidas haverá muitas causas, mas não será o caso desta. Manter uma paixão é salutar e mais ainda quando vem ela lá de longe, de tempos imberbes. E saudável é também estar com amigos, deleite que, na circunstância em apreço, acontece por via da alegria de enrolar o punho em grupo, estrada fora a seguir o roncar dos muitos cavalos reunidos na alcateia – “manada” é nome demasiado ruminante e o espírito, mau grado os anos, pretende-se que seja ainda o do “Born To Be Wild”... Acresce, por fim, o facto de cada viagem nos conduzir a paisagens outras que as habituais e desembocar, sempre, à mesa de um restaurante simpático. “Causa perdida”? Não. Conviver assim é um prazer, apesar da dor nas costas...

GENESIS: O MILU foi ideia repentina de duas mentes brilhantes: A Educação Física e as Artes cruzaram-se à saída da Escola, no final de um dos insípidos dias da época de exames de 2007/2008 e, na decisão de quem tem mesmo de espairecer, trocaram de menina dos olhos e lá foram até à Ericeira, o mar logo aqui. E aí, entre um prato de caracóis e uma ou outra bejeca, lá apalavraram o útil da camaradagem ao prazer do ronronar do motor entre pernas, controlado. O depois consta nos registos do boca a boca: parece que a Educação Física aliciou a Filosofia, chamando-a à razão das duas rodas bem assentes no asfalto dos dias. Daí ao resultado final bastou meio punho e leve toque de embraiagem. A eles, desportistas artistas filósofos, cedo se ligaram as Ciências e as Línguas, até mesmo as clássicas. Resumindo: total interdisciplinaridade, sem taxas nem metas nem actas, salvo novas curvas com restaurantes à saída. Veio um sábado livre nesse final de ano lectivo, com Évora na ponta da roda da frente. E fomos. Seis velhos putos profs, em cinco meninas montados – atenção: eram elas maiores de 500 cm3.

EM BUSCA DO ALCATRÃO PERDIDO: De Mafra a Évora vai-se num pulo, pela auto-estrada. Viagem vulgar, é verdade. Mas foi a primeira “em busca do alcatrão perdido”. E certo é, também, que demos com a divinal “Quarta-feira”, taberna típica no centro da cidade, rua estreita e histórica, perto do Templo de Diana. O dono nem sequer nos mostrou a lista:
– Os compadres vêm de mota? Lá de Mafra? Então sentem-se, sentem-se, meninos. Eu cá sei do que gostam...
E vieram as entradas de cogumelos com molho de azeite e alho e coentros, de paio e presunto e queijo e pão alentejano, e mais a carne, alguém se lembra do nome do prato?, e ainda o tinto, como se chamava?, e os doces...
– Nãa, o menino tem de comer o docinho, tem de comer o docinho!
Uff! Após o repasto, e dada a canícula, sentámo-nos numa esplanada da Praça do Giraldo, também perto. E foi aí que à baila veio o nome “Milu”, vá lá saber-se porquê, talvez por ser o diminutivo de Maria de Lurdes... Arrancámos. O Armindo na sua Suzuki GSX 1100 F, o Martinho na BMW 1150 RT, o Rosa e o Valentim na imponente Honda GoldWing, o Carlos na Honda CBF 1000 e o Adriano na velhinha BMW F 650. O regresso fez-se na ponta da unha, com paragem na área de serviço de Alcochete, à espera e para dar descanso a quem aflito já estava com a força do vento...
Seguiu-se Almeirim, o “Paulus” e a sopa de pedra, mais o sável e o pernil e, sobretudo, o Tejo e as estradas secundárias da lezíria ribatejana, até darmos com a Azinhaga, terra de José Saramago, onde fomos recebidos, com alguma admiração e muita simpatia, por todos os funcionários do museu que tem o nome do patrono da nossa escola e, também, pelo patrão e clientes da tasca em frente.
Dessa vez, já o Ismael vinha connosco, a bordo da GoldWing e a passar uma por outra vez pelas brasas, com o Valentim à pendura na RT do Martinho, já à espera do seu exame de condução. Imaginem: cinquenta e poucos anos e deixa-se ser picado pelo bichinho das motos! Grande Valentim! No entretanto, já o Carlos se pavoneava, montado na sua brilhante BMW R 1200 ST. Tínhamos saído de Mafra à chuva, mas passámos por Santarém sob um calor que só não era de rachar porque a tarde caía. Ainda parámos no Campera, pois havia quem quisesse comprar um capacete XPTO a preço de saldo. E foi bem comprado. Não só por ser barato, mas por ser seguro, que nisto de andar de mota não há nada como nos defendermos a preceito. E lá fomos para Mafra, com eles a muitos à hora, palavra do Ismael.
Na calha veio depois Peniche, onde as sereias andam de Honda Varadero, o Armindo que o confirme. Seja como for, foi uma motard de sonho quem, depois do Cabo Carvoeiro e os corvos e o mar e as Berlengas ao fundo, nos indicou o caminho para o “Estelas”, onde nos deparámos, e debatemos, com uma caldeirada digna de musas. Tão digna delas que a conversa logo deslizou, animada e amiga, entre Vergílio Ferreira e Saramago, a arte do mergulho, a arqueologia submarina e o dar aulas, apanhar percebes ou mexilhão e deixá-los no ponto, no prato.
Lagoa de Óbidos, logo após o debate. Um café e mais bate-papo, numa esplanada à beira de água. No regresso, acabámos por nos separar do Carlos. Atrasado pelo trânsito no Cadaval, preferiu a A8, enquanto nós optámos pelas curvas do Bombarral. Chegou mais cedo a casa, ao passo que a gente, já escuro, ainda se perdeu à lareira do Ismael, entre uma fatia de queijo, um copito de bom tinto e as preocupações do costume, Maria de Lurdes “oblige”.
Sesimbra no horizonte, aos trinta dias de Dezembro do ano da graça de 2008. Devia ser o baptismo de fogo do Valentim, mas o próprio achou, e bem, que os nervos da aprovação no exame ainda estavam demasiado à flor da pele e atrapalhavam os comandos da sua Virago. Seguiu no sossego da GoldWing, e lá rumámos ao “Escondinho” e à feijoada de gambas. Ida e volta impecáveis, com a sensação de liberdade que só se tem quando se entra em Lisboa de mota, pela ponte 25 de Abril. Resta que, alguns dias depois, o Valentim se baptizou mesmo, diante de um bacalhauzinho com todos, aqui nas Arroeiras, comigo e o Armindo como segundos padrinhos. Na verdade, o primeiro até foi o Rosa, mas disso não se lavrou acta. Parece que nessa primeira cerimónia alguém baralhou as mãos, situação que, em duas rodas, dá quase sempre origem ao inevitável.


Professor Adriano Alcântara,
professor de Português e Francês na Escola Secundária José Saramago.

1 comentário:

LBarros disse...

Gostei muito do relato, Adriano. Obrigada mais uma vez pela tua preciosa participação.