quinta-feira, novembro 04, 2010

Nacos de Prosa Saramaguiana (2)

O dia seguinte era domingo, e domingo é o dia de levar o cão a passear. Amor com amor se paga, parecia dizer-lhe o animal, já com a trela na boca e a postos para o passeio. Quando, já no parque, o violoncelista se encaminhava para o banco onde era costume sentar-se, viu, de longe, que uma mulher já se encontrava ali. Os bancos de jardim são livres, públicos e em geral gratuitos, não se pode dizer a quem chegou primeiro que nós, Este banco é meu, tenha a bondade de ir procurar outro. Nunca o faria um homem de boa educação como o violoncelista, e menos ainda se lhe tivesse parecido reconhecer na pessoa a famosa mulher do camarote de primeira ordem, a mulher que havia faltado ao encontro, a mulher a quem vira no meio da sala de música com as mãos cruzadas sobre o peito.
Como se sabe, aos cinquenta anos os olhos já não são de fiar, começamos a piscar, a semicerrá-los como se quiséssemos imitar os heróis do faroeste ou os navegadores de antanho, em cima do cavalo ou à proa da caravela, com a mão em pala, a esquadrinhar os horizontes distantes. A mulher está vestida de maneira diferente, de calças e casaco de pele, é com certeza outra pessoa, isto diz o violoncelista ao coração, mas este, que tem melhores olhos, diz-te que abras os teus, que é ela, e agora vê lá bem como te vais portar. A mulher levantou a cabeça e o violoncelista deixou de ter dúvidas, era ela. Bons dias, disse quando se deteve junto do banco, hoje poderia esperar tudo, mas não encontrá-la aqui, Bons dias, vim para me despedir e pedir-lhe desculpa por não ter aparecido ontem no concerto.
O violoncelista sentou-se, tirou a trela ao cão, disse-lhe Vai, e, sem olhar a mulher, respondeu, Não tenho nada que desculpar-lhe, é uma coisa que está sempre a suceder, as pessoas compram bilhete e depois, por isto ou por aquilo, não podem ir, é natural, E sobre o nosso adeus, não tem opinião, perguntou a mulher, É uma delicadeza muito grande da sua parte considerar que deveria vir despedir-se de um desconhecido, ainda que eu não seja capaz de imaginar como pôde saber que venho a este parque todos os domingos, Há poucas coisas que eu não saiba de si, Por favor, não regressemos às absurdas conversas que tivemos na quinta-feira à porta do teatro e depois ao telefone, não sabe nada de mim, nunca nos tínhamos visto antes, Lembre-se de que estive no ensaio, E não compreendo como o conseguiu, o maestro é muito rigoroso com a presença de estranhos, e agora não me venha para cá com a história de que também o conhece a ele, Não tanto como a si, mas você é uma excepção, Melhor que não o fosse, Porquê, Quer que lho diga, quer mesmo que lho diga, perguntou o violoncelista com uma veemência que roçava o desespero, Quero, Porque me apaixonei por uma mulher de quem não sei nada, que anda a divertir-se à minha custa, que irá amanhã sei lá para onde e que não voltarei a ver, É hoje que partirei, não amanhã, Mais essa, E não é verdade que tenha andado a divertir -me à sua custa, Pois se não anda, imita muito bem, Quanto a ter-se apaixonado por mim, não espere que lhe responda, há certas palavras que estão proibidas na minha boca, Mais um mistério, E não será o último, Com esta despedida vão ficar todos resolvidos, Outros poderão começar, Por favor, deixe-me, não me atormente mais, A carta, Não quero saber da carta para nada, Mesmo que quisesse não lha poderia dar, deixei-a no hotel, disse a mulher sorrindo, Pois então rasgue-a, Pensarei no que devo fazer com ela, Não precisa pensar, rasgue-a e acabou-se. A mulher pôs-se de pé. Já se vai embora, perguntou o violoncelista. Não se havia levantado, estava de cabeça baixa, ainda tinha algo para dizer. Nunca lhe toquei, murmurou, Fui eu que não quis que me tocasse, Como o conseguiu, Para mim não é difícil, Nem sequer agora, Nem sequer agora, Ao menos um aperto de mão, Tenho as mãos frias. O violoncelista ergueu a cabeça. A mulher já não estava ali.
Homem e cão saíram cedo do parque, as sanduíches foram compradas para comer em casa, não houve sestas ao sol. A tarde foi longa e triste, o músico pegou num livro, leu meia página e atirou-o para o lado. Sentou-se ao piano para tocar um pouco, mas as mãos não lhe obedeceram, estavam entorpecidas, frias, como mortas. E, quando se voltou para o amado violoncelo, foi o próprio instrumento que se lhe negou. Dormitou numa cadeira, quis afundar-se num sono interminável, não acordar nunca mais. Deitado no chão, à espera de um sinal que não vinha, o cão olhava-o. Talvez a causa do abatimento do dono fosse a mulher que apareceu no parque, pensou, afinal não era certo aquele provérbio que dizia que o que os olhos não vêem, não o sente o coração. Os provérbios estão constantemente a enganar-nos, concluiu o cão. Eram onze horas quando a campainha da porta tocou. Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir abrir. Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas noites, respondeu o músico, esforçando-se por dominar o espasmo que lhe contraía a glote, Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor. Afastou-se para a deixar passar, fechou a porta, tudo devagar, lentamente, para que o coração não lhe explodisse. Com as pernas tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse, Como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me comprometi, Suponho que veio para trazer a carta, que não a rasgou, Sim, tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma, então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que as pressas são más conselheiras, Como queira, estou ao seu dispor, Di-lo a sério, É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir, principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo de que maneira, Tem ali um piano, Nem pense nisso, sou um pianista medíocre, Ou o violoncelo, É outra coisa, sim, poderei tocar-lhe uma ou duas peças se faz muita questão, Posso escolher, perguntou a mulher, Sim, mas só o que estiver ao meu alcance, dentro das minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite número seis de bach e disse, Isto, E muito longa, leva mais de meia hora, e já começa a ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio em que tenho dificuldades, Não importa, salta-lhe por cima quando lá chegar, disse a mulher, ou nem será preciso, vai ver que tocará ainda melhor que rostropovitch. O violoncelista sorriu, Pode ter a certeza. Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovitch, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cothen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.

José Saramago, As Intermitências da Morte


Naco de prosa escolhido pela professora Ana Gonçalves.

2 comentários:

Licínia Quitério disse...

"No dia seguinte ninguém morreu."
O romance desenrola-se e nós não o largamos e um dia fechamos o livro e dizemos para nós mesmos: Como é que eu, por absurdo, nunca tinha pensado nesta hipótese? Podemos até chegar a pensar que vida e morte se justificam mutuamente. Podemos até pensar que...
São assim os romances de Saramago. Agitam-nos, sobressaltam-nos, surpreendem-nos. Invariavelmente, dão uma volta nas nossas cabeças e pôem-nos a pensar. Pensar é perigoso, dizem baixinho os poderosos. Foi assim, é assim Saramago, para nosso contentamento.

LBarros disse...

Há quem diga que sim, Licínia, que pensar é perigoso. Felizmente há sempre quem nos faça pensar e não se vergue aos canônes impostos. Como escrevi num post aí para baixo, escrever é sempre transgredir, a arte, para que o seja tem de ser transgressão.
Beijinho