quarta-feira, novembro 24, 2010

Ratos e homens

Reza a lenda que corria o ano da graça de 1948 quando um jornalista, João Paulo Freire de seu nome, lançou a maldição sobre Mafra. Num artigo publicado no Jornal de Notícias surgia o rastilho de uma bomba com contornos nunca explicados. O jornalista descrevia o que era estar numa das janelas dos torreões do Palácio de Mafra e ver as “enormes ratas” a passear no fosso que circunda o monumento. Esse momento de inspiração – que muitos atribuem a uma hipotética e nunca provada encomenda da gigante Bayer – faria com que esta terra se tornasse nacionalmente conhecida. Afinal que outro sítio neste Portugal precisaria de ser evacuado num raio de 40 quilómetros para que os potentes raticidas fizessem efeito nesses bichos bestiais, capazes de feitos horríveis como é o caso dos dois “magalas”? Reza outra lenda, que deriva da primeira, que um soldado já meio bebido caiu no fosso do Palácio, um companheiro de armas que o acompanhava, juram as fontes ouvidas nesta lenda, escuta-o gritar e pedir socorro. O amigo valente do azarado soldado corre para o socorrer, desce pelos calabouços e sai por uma porta que dá acesso ao fosso onde, ali chegado, ainda vê os “ratos do tamanho de cães” devorarem o amigo. Dizem os relatos da época que o horror foi tanto que o segundo soldado tentou fugir, sem êxito já se vê, e assim duas mortes ficaram associadas aos bichos. Foi um ápice até aparecerem “estórias” que aproveitavam coisas reais que bem vestidas davam força à invenção. Ele era os cozinheiros da Escola Prática de Infantaria que atiravam todos os dias os restos da comida para os subterrâneos para evitar que aquela massa desconhecida de ratazanas invadisse Mafra, era a história dos soldados que foram enviados para os subterrâneos para salvar os dois primeiros, eram valentes e foram até munidos de um lança-chamas. A ferocidade desses roedores do Inferno foi tal que nem o lança-chamas escapou, devorado por esses seres bestiais com apetite digno de um Tyrannosaurus Rex.
Lendas e histórias que fazem do Palácio Nacional de Mafra um lugar místico, próprio para o desenvolvimento da criatividade humana. Assim o fez José Saramago quando agarrou no monumento e lhe deu vida nova através do amor de Baltasar e Blimunda no Memorial do Convento. Um livro ímpar na nossa literatura e que, enquanto ficção que é, fez com que as também ficcionadas ratazanas gigantes fossem votadas ao esquecimento. Hoje, quem chega a Mafra não pergunta pelos ratos. Hoje, quem chega a Mafra, procura a “pedra do livro do Saramago”. Hoje, e só para este ano lectivo de 2010/2011, o Palácio Nacional já tem mais de 60 mil alunos portugueses inscritos para efectuarem a visita baseada na obra, já para não falar nas muitas visitas de gente de todos os cantos do Mundo que entram no Palácio com uma cópia traduzida da obra.
O que Mafra deve a Saramago, e Saramago a Mafra, é que num momento único o seu génio entrou de corpo e alma no nosso Palácio, fazendo em definitivo explodir a sua escrita e alimentaram-se mutuamente. Ora digam lá se isto não vale mais que alimentar histórias de ratazanas gigantes?

Hélder Franco, jornalista da Rádio Concelho de Mafra

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