quinta-feira, dezembro 02, 2010

Uma casa com vista para o mundo


Quantos filmes românticos vi ao longo da minha vida? Perdi a conta. A maioria não ficou para a História, nem sequer para a minha história pessoal, mas cumpriu a sua função que foi a de ficcionar o amor, oferecendo-me matéria-prima para os meus sonhos de rapariguinha e mais tarde para as minhas evasões de mulher adulta.
Nesta relação que estabeleci para a vida a realidade também tem o seu papel, que é o de ficar sempre à minha espera, à saída da sala, mesmo a tempo de me levar de volta às minhas rotinas. Creio que a primeira vez que ela não ficou à porta foi há dias, quando fui ver José e Pilar. Neste caso não fazia sentido. Afinal não se tratava de ficção mas do documentário de Miguel Gonçalves Mendes sobre José Saramago e Pilar del Rio.
Não vi beijos ardentes neste filme. O galã é octogenário, tem um rosto duro e uma voz seca, tão seca que até as suas maravilhosas declarações de amor a Pilar soam desajeitadas - "Se tivesse morrido antes de a conhecer morria mais velho do que serei quando chegar a minha hora", "Eu tenho ideias para romances, ela tem ideias para a vida" - mas no final saí da sala emocionada.
Miguel Gonçalves Mendes combina gravações do casal em registo de reportagem, na intimidade e em público, a cumprir a frenética agenda do Nobel, com imagens estilizadas a servir de suporte aos pensamentos do escritor. Desta montagem arrojada resulta uma obra esteticamente irrepreensível, com o ritmo adequado ao pulsar dos seus protagonistas.
Filmado no período em que escreveu e lançou A Viagem do Elefante, seu penúltimo livro, Saramago assume desde logo como matéria de reflexão o tema da morte, incontornável na sua já avançada idade. O documentário abre com ele em grande plano a despedir-se: "encontramo-nos noutro sítio". Depressa percebemos que é para Pilar que fala, não para nós.
Foi Saramago que disse um dia que "a nossa única defesa contra a morte é o amor". Quando vemos José e Pilar expostos nas minudências do quotidiano, placidamente instalados um no outro, percebemos a dimensão desta frase. Percebemos igualmente porque sendo ele ateu, se sai com aquele repto: "Encontramo-nos noutro sítio". Finalmente, entendemos também porque escolheu o escritor para morada aquela ilha espanhola tão inóspita. Quando Miguel Gonçalves Mendes nos mostra que o casal chamou à vivenda onde morava "a casa", faz-se luz. Pessimista como era em relação à espécie humana, aquele lar com a envolvente era uma metáfora: o seu refúgio do mundo.
Que bela foi esta história de amor e que cativante era este Saramago apaixonado.
De braço dado com a realidade, desta vez ao sair da sala vi-me em grandes dificuldades para me desligar do filme.

Teresa Ribeiro do Delito de Opinião

1 comentário:

LBarros disse...

Belo texto, Teresa. Vou seguir a tua sugestão e ver o filme.