O telefone despertou-me numa fria manhã de Junho. Sentei-me na cama. A luz, lá fora, inerte e alheia, morria numa lenta gradação de cinzentos. Era triste como uma fotografia antiga. Naquela posição, sem precisar de mover a cabeça, sem precisar sequer de mover os olhos, eu via os barcos levitando na baía. Luanda em Junho pode ser uma cidade muito triste. Reconheci a voz, do outro lado, mas não me conseguia lembrar a quem pertencia.
- Aconteceu de novo...
- Quem fala?
O gritar das cigarras. Uma funda e escura alameda de acácias rubras. Fechei os olhos e voltei a ver os troncos cobertos pelas cascas das cigarras. Quando era criança achava que fossem fantasmas de cigarras. Não sabia ainda que as cigarras mudam de pele (ou de corpo) vezes sem conta. Fiz um esforço para afastar o sono. Preferia estender-me na cama e adormecer de novo. Tenho sonhos tristes. Às vezes choro enquanto durmo. Só choro, aliás, enquanto durmo. Todavia a luz, lá fora, era ainda mais triste do que as sombras dos meus sonhos mais tristes.
José Eduardo Agualusa (2006), Passageiros em Trânsito, Dom Quixote
Composição
Passageiros em Trânsito é composto por vinte e dois contos do escritor angolano José Eduardo Agualusa, anteriormente publicados na revista do Público e agora compilados num só volume. A composição recente data de 2006. A aventura, o fantástico e a inquietude de outras latitudes são os princípios activos de base, embora outros componentes presentes contenham a procura incessante de quem somos afinal nesta travessia e alguma nostalgia encerrada no verbo partir.
Indicações
Passageiros em Trânsito está particularmente indicado para quem gosta de viajar, sente o apelo da partida e tem curiosidade acerca de paragens distantes. Também indicado para quem aprecia uma boa prosa, simples e despretensiosa, mas carregada de significado e alguma mística que espreita aqui e ali.
Contra-indicações
Não deve ser lido por indivíduos com obsessão pela segurança do aconchego do lar, cheios de certezas, desprovidos de fantasia e com tendência para a aversão a relatos ficcionais e estórias com laivos de exotismo, algumas peripécias e palavras cheias de calor e cor. O carácter breve e conciso dos contos está contra-indicado nos amantes de romances longos e densos.
Precauções
Indivíduos sugestionáveis com tendência para imergirem nas personagens devem evitar a leitura de Passageiros em Trânsito. Podem ocorrer ataques ligeiros de ansiedade de partida e excitabilidade. Verificaram-se casos raros de taquicardia e alucinações. Caso os leitores sintam uma coceira no estômago, a curiosidade a crescer dentro de si ou a procura involuntária do passaporte ou da mala de viagem devem descontinuar a leitura imediatamente. Se os sintomas persistirem mude de leitura ou corre o risco de acordar no outro lado do Atlântico.
Posologia
Passageiros em Trânsito deve ser lido em doses pequenas, ao ritmo de um conto por dia para melhores resultados e fazer jus ao tempo diferente e ritmado das latitudes em que decorre a acção. Se se sentir tentado a rumar pela leitura dentro pode ler dois ou mais. Não são conhecidos efeitos de sobredosagem. É muito bem tolerado por indivíduos imaginativos e de alma errante.
Outras apresentações
Se se deu bem com a leitura de Passageiros em Trânsito deve continuar a ler mais livros do autor como Um Estranho em Goa ou O Vendedor de Passados. Como complemento estão indicados outros relatos de viagens alicerçados na realidade de carácter não ficcional como Sul de Miguel Sousa Tavares. Recomenda-se a leitura de Mia Couto, com especial incidência no mais recente romance do escritor moçambicano O Outro Pé da Sereia.
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