quarta-feira, outubro 29, 2008

Köszönöm

Acaso. Coincidência. Casualidade. Tranquilamente no quarto de hotel após um dia longo de deambulação por Budapeste, precedido de outros dois igualmente preenchidos, abandonei o guia de viagem de letras puídas pelas leituras sucessiva e fiquei entregue aos canais de televisão oferecidos: quatro nacionais, uns quantos alemães e o americano de sempre. No pequeno ecrã de televisão na cómoda ao fundo da cama resolvi entregar-me à aventura alquímica das línguas desconhecidas. Era noite já. Na fresta da janela do quarto não se vislumbrava réstia de luz. Daquele lado da Europa e no último mês do ano, o sol é preguiçoso e tímido.
O dia anterior anunciara o acontecimento quando, na Praça dos Heróis, os ensaios militares da cerimónia fúnebre tomavam conta de uma parte da praça, inquietando e restringindo o périplo dos turistas curiosos, sempre à espera de uma oportunidade para aquela foto panorâmica sem muita gente, o Monumento milenar com a coluna bem centrada, e a própria praça flanqueada por duas galerias de inspiração grega. Não seria naquele dia, por certo, mesmo que o céu azul e a luminosidade do zénite augurasse a fotografia perfeita. Outro dia talvez.
No próprio dia, a cidade engalanada com faixas negras e o perímetro da Catedral de Santo Estêvão delimitado por polícias para quem o inglês era aparentemente tão estranho e incompreensível como o magiar para os portugueses. E magiar, porque a sonoridade da palavra remete no inconsciente para a magia subjacente a uma cidade grandiosamente silenciosa e sedutora, a magia que irradiam os olhos azuis profundos em contraste com os cabelos ora muito escuros ora alvos da passagem do tempo de um povo afável, dono como poucos da sua cidade salpicada aqui e ali de bancos de jardim permitindo adivinhar que aquela cidade é de quem lá vive e se entretém num banco de jardim na languidez do quotidiano mesmo de costas viradas para o Danúbio. Ficaria, pois, adiada uma visita mais prolongada e tranquila à Catedral.
As cerimónias tomavam lugar num início de noite sem luar. Primeiro no estádio do Ferencváros. Depois o cortejo até à Catedral de Santo Estêvão, onde Puskás seria sepultado e isto não porque entendesse os discursos e a locução, mas porque as imagens não deixavam dúvidas. Mesmo experimentando infantilmente associar a imagem ao som, nada, à excepção de três palavras faziam sentido no labirinto de uma língua ininteligível: Köszönöm, Puskás Ferenc.
Zsoze Kósta descreveu magistralmente as dificuldades da língua magiar, avisara ser a única que o diabo respeita, e, ao afirmar que sem a mínima noção do aspecto da estrutura, do corpo mesmo das palavras, eu não tinha como saber onde cada palavra começava ou até onde ia. Era impossível destacar uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio a uma faca, deixou-me mais uma vez com a certeza que as mais preciosas impressões de viagem são as que vêm em livros prenhes com o toque mágico do escritor, não irmanam lado a lado, no mesmo escaparate de qualquer livraria, com as lombadas coloridas dos quatro cantos do mundo. Köszönöm, Zsoze Kósta! Obrigada, Chico Buarque!

foto: minha

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