A porta da residência abriu-se enfim e a cabeça redonda do cura apareceu. Que querem vocês a estas horas da noite. Os homens deixaram o portão do passal e avançaram, arrastando os pés, para a outra porta. Está alguém a morrer, perguntou o cura. Todos disseram que não senhor. Então, insistiu o servo de deus, aconchegando-se melhor com a manta, Na rua não podemos falar, disse um homem. O cura resmungou. Pois se não podem falar na rua, vão amanhã à igreja, Temos de falar agora, senhor padre, amanhã poderá ser tarde, o assunto que aqui nos trouxe é muito sério, é um assunto de igreja. De igreja, repetiu o cura, subitamente inquieto, pensando que o apodrecido travejamento do tecto tinha vindo abaixo. Sim senhor, de igreja. Então entrem, entrem. Empurrou-os para a cozinha em cuja lareira esbraseavam ainda uns restos de lenha queimada, acendeu uma candeia, sentou-se num mocho e disse. Falem. Os homens olharam uns para os outros, duvidando sobre quem deveria ser o porta-voz, mas estava claro que só tinha realmente legitimidade aquele que havia dito que ia ouvir o que se estava dizendo no grupo onde se encontravam o comandante e o cornaca. Não foi preciso votar, o homem em questão tinha tomado a palavra. Senhor padre, deus é um elefante. O padre suspirou de alívio, era preferível isto a ter caído o telhado, além do mais, a herética afirmação era de fácil resposta. Deus está em todas as suas criaturas, disse. Os homens moveram as cabeças no modo afirmativo, mas o porta-voz, muito consciente dos seus direitos e das suas responsabilidades, retorquiu. Mas nenhuma delas é deus. Era o que faltava, respondeu o cura, teríamos aí um mundo a abarrotar de deuses, e ninguém se entenderia, cada um a puxar a brasa à sua sardinha. Senhor padre, o que nós ouvimos, com estes ouvidos que a terra há-de comer, é que o elefante que aí está é deus. Quem foi que proferiu semelhante barbaridade, perguntou o cura usando uma palavra não corrente na aldeia, o que nele era claro sinal de enfado, O comandante da cavalaria e o homem que viaja em cima. Em cima de quê. De deus, do animal.
José Saramago, A Viagem do Elefante
Mais um dos meus nacos de prosa saramaguiana
2 comentários:
Um belo naco do belo romance perpassado por grande ironia que nos confunde, sabendo que Saramago o escreveu quando estava gravemente doente.
Inacreditável se pensarmos também na idade de Saramago.
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