sexta-feira, novembro 05, 2010

Uma Personagem em Construção (1)

UMA PERSONAGEM EM CONSTRUÇÃO
Ou como, em Memorial do Convento, de José Saramago, se reescreve a História, construindo um herói com os homens que a História olvida

I

“Todos os homens são reis, rainhas são todas as mulheres, e príncipes os trabalhos de todos.”
SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, 1986, cap. VII, p. 72

Esta afirmação do narrador resume uma das várias linhas de sentido que se entretecem em Memorial do Convento, conduzindo o leitor à assunção do ideal que a Revolução Francesa perpetuou na divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. O romance permite, de facto, considerar a possibilidade histórica de concretização do sonho de uma sociedade em que os homens partilhem fraternalmente o trabalho e o poder: vejam-se, por exemplo, as relações igualitárias estabelecidas entre o casal Baltasar/ Blimunda e o padre Bartolomeu Lourenço ou o músico Domenico Scarlati.
Por outro lado, e em simultâneo, no discurso recorre-se com frequência ao paralelismo antitético, para se evidenciar o antagonismo entre o poder real e religioso e a imensa mole humana que nada tem nem nada pode. A reiteração dessa oposição entre as duas situações sugere a presença, no texto, de uma linha de sentido que legitimaria uma interpretação da narrativa fundamentada na doutrina estético-literária neo-realista.
É certo que, nas entrelinhas ou muito denotativamente, em Memorial do Convento se representa a miséria em que vivem e labutam “os homens”, se denuncia a prepotência de D. João V e se critica o conformismo promovido pela Igreja. E certo é, também, que (n)a narrativa (se) veicula a possibilidade de redenção humana:

José Pequeno (...) perguntou, Como é que um boieiro se faz homem, e Manuel Milho respondeu, Não sei. Sete-Sóis atirou o calhau para a fogueira e disse, Talvez voando.
XIX, 264

No entanto, o maniqueísmo de semelhante interpretação seria demasiado redutor: Memorial do Convento não é um romance neo-realista, e não apenas porque na narrativa não há revolta, mas calada resignação ou alegre zelo popular no bodo que eram os autos-de-fé, as procissões ou as touradas. Não o é, seja pelo estilo vertiginoso do autor, criando a cada passo a sensação de improviso coloquial e, ao mesmo tempo, a cada passo provocando a eclosão da subjectividade, seja, sobretudo, pelo modo como são tratadas as categorias da narrativa e, em particular, o narrador(i) e o tempo.
Por norma, o romance neo-realista privilegia os tempos do pretérito, típicos da narrativa, e institui um narrador heterodiegético que, preocupado com a objectividade, assume quase sempre uma focalização externa. Ora, em Saramago, o estatuto do narrador é muito mais complexo, verdade bem ilustrada no texto de Memorial do Convento, onde a enunciação, confiada a um “nós” homodiegético:

De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vão a Pêro Pinheiro, pese-nos deixar ir sem vida contada aquele Brás (...).
XIX, 242

pode, contudo, surgir na voz de um narrador de terceira pessoa capaz de, a seu bel-prazer, se transfigurar no “eu” de uma das personagens:

(...) era o Francisco Marques que aproveitava a ocasião para ir enforcar-se entre as pernas da mulher, (...) ou não será tal a ideia, talvez queira apenas estar com os filhos, dar uma palavra à esposa, cortejá-la somente, sem pensar em fornicações que teriam de ser apressadas porque os companheiros vêm aí atrás, e pelo menos a Pêro Pinheiro convém que chegue ao mesmo tempo que eles, já estão passando, afinal sempre me deitei contigo (...).
XIX, 243

À complexidade em que se define a presença do narrador, associa-se também um matizado espectro de pontos de vista narrativos que, de uma para outra sequência, ou mesmo no seio de uma única sequência, podem balancear da omnisciência ao intimismo da focalização interna, passando, ainda, pela objectiva visão testemunhal:

O sino da igreja de Santo André, no fundo do vale, deu as trindades. Por sobre a Ilha da Madeira, nas ruas e terreiros, dentro das tabernas e casas de acomodação, ouve-se um murmúrio longínquo, como o do mar ao longe. Estariam vinte mil homens dizendo a oração da tarde, estariam contando uns aos outros a sua vida, vá lá averiguar-se.
XVIII, 238

A originalidade deste narrador resulta, ainda, do tratamento dado à categoria tempo, pressuposto, aliás, no próprio título, já que o nome “Memorial” remete para a contemporaneidade entre a história e quem a relata. Todavia, e em paralelo, o narrador define-se também em função do tempo do discurso que ele próprio enuncia, deste modo se assumindo como entidade capaz não só de produzir e garantir a veracidade da história, porque a presenciou, como ainda de a confrontar com acontecimentos posteriores que também conhece, por serem anteriores ao tempo da escrita, do qual é igualmente contemporâneo. Assim se explica o uso do presente e do futuro do indicativo, índices de um sujeito narrativo que tanto sabe apenas o que vive como o todo que a omnisciência lhe permite saber:

(...) faça as contas quem quiser, que a laje tem de comprimento trinta e cinco palmos, de largura quinze e a espessura é de quatro palmos (...) e quando um dia se acabarem palmos e pés por se terem achado metros na terra, irão outros homens a tirar outras medidas e encontrarão sete metros, três metros, sessenta e quatro centímetros, tome nota, e porque também os pesos velhos levaram o caminho das medidas velhas, em vez de duas mil cento e doze arrobas, diremos que o peso da pedra da varanda da casa a que se chamará de Benedictione é de trinta e um mil e vinte e um quilos, trinta e uma toneladas em números redondos, senhoras e senhores, e agora passemos à sala seguinte, que ainda temos muito que andar.
XIX, 245

Tudo se passa, afinal, como se ao narrador fosse dado “viver” o tempo tal como o concebe o autor, que o entende como “uma tela imensa” onde tudo se mantém “espalmado” lado a lado, numa “arrumação caótica” à qual necessário é, depois, “encontrar um sentido. (ii)
Viajando nessa “tela”, habitando-a, o narrador convoca o passado e encontra nele sentido(s) que a História negligencia. Reescreve-a, então, destacando aqueles que nela são menosprezados. Para tal, institui como protagonista essa gente de que a História não fala, mas cujas vidas, ficcionadas, passam a ser

(...) mais verdadeiras que os casos verdadeiros que elas contam (...)”
XII, 137

E é isso que procuraremos entender adiante: como é que de uma multidão anónima, calejada e exausta, se constrói um dos heróis do romance, e ainda como, arrancando ao anonimato um grupo restrito desses homens, se consegue refractar, “(...) na sua história e no seu discurso uma maneira de ser, uma identidade bem portuguesa (...)” . (iii)
Tentaremos, por fim, compreender ainda como, partindo das acções desses homens, do seu espaço físico e social e dos seus atributos, se chega à configuração de um sentido indiciador da necessidade de lembrarmos que, no passado como no presente, todos os homens são iguais. E, também, da obrigação de, no presente como no passado, nunca esquecermos “(...) que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante.” (iv)
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(i) No que concerne a esta categoria, julgamos haver alguma precipitação, quando se afirma: “É toda uma descrição minuciosa do tamanho da pedra, das reacções de homens e animais (...), mas, mais importante que todo este aparato épico, é, sem dúvida, o objectivo de enfatizar, em confronto com o poder régio, o peso político-ideológico, aos olhos do narrador neo-realista, da força humana e animal.” – MONIZ, António, Para uma Leitura de Memorial do Convento de José Saramago. Uma proposta de leitura crítico-didáctica, Lisboa, Editorial Presença, 1995, p. 97, sublinhado nosso).

(ii) Cf. REIS, Carlos e M. LOPES, Cristina, Dicionário de Narratologia, 6ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1998, pp. 80 e seguintes.

(iii) Cf. op. cit. nota i, p. 32.

(iv) SARAMAGO, José, Discursos de Estocolmo, Lisboa, Caminho, 1999, p. 32.


Adriano Alcântara
Professor de Português e Francês
Escola Secundária José Saramago – Mafra
Janeiro de 2000

(continua)

2 comentários:

LBarros disse...

Muito bem, Adriano! Gosto de te ver por cá.

Licínia Quitério disse...

Que abordagem culta e crítica da obra. A dissertação exemplificada da diferença entre o narrador e o autor, que por vezes confunde o leitor menos treinado, é de grande valia didáctica, como era de esperar de um Professor de alma inteira. Eu, pelo menos, aprendi alguma coisa.
Bem hajam, Professores Leonor e Adriano.