continuação deste texto
UMA PERSONAGEM EM CONSTRUÇÃO
Ou como, em Memorial do Convento, de José Saramago, se reescreve a História, construindo um herói com os homens que a História olvida
II
“(...) e a vila, lá em baixo na cova, é Mafra, que dizem os eruditos ser isso mesmo que quer dizer, mas um dia se hão-de rectificar os sentidos e naquele nome será lido, letra por letra, mortos, assados, fundidos, roubados, arrastados (...)”
SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, 1986, cap. XXI, p. 295
A dezassete de Novembro de mil setecentos e dezassete, seis anos após haver formulado o seu voto, D. João V desloca-se a Mafra, a fim de comemorar o início da construção do convento. O fausto da cerimónia é descrito no capítulo doze do romance de Saramago, em oposição irónica ao trabalho dos seiscentos homens que até aí haviam cavado os alicerces e que, depois, a penar continuariam, com muitos mais, até à conclusão da real obra:
(...) ajudem-me aqui, podemos assentar a pedra, porém, sejam as mãos de vossa majestade as últimas a tocar-lhe, pronto, um toque mais para toda a gente ver, pode vossa majestade subir, cuidado não caia, que o resto do convento nós o construiremos (...)
XII, 135-136
Conhecendo o futuro e sabendo da prolepse, o narrador recorda-nos, logo após, a insensibilidade do rei face às despesas e sacrifícios que ainda seriam exigidos ao reino e à sua “arraia miúda”:
(...) um dia virá em que quereremos saber. Afinal, quanto terá custado aquilo, e ninguém dará satisfação dos dinheiros gastos (...) sem falar de mortes e sacrifícios, que esses são baratos.”
XII, 136-137
A sagração da basílica ocorrerá a vinte e dois de Outubro de mil setecentos e trinta, com as devidas pompas e circunstâncias relatadas no capítulo vinte e quatro. Se os treze anos decorridos entre uma e outra data não foram suficientes para a conclusão total do edifício, os treze capítulos que entre ambas se sucedem bastam para erguer à categoria de herói colectivo todos aqueles que, aos milhares, para Mafra vieram penar e em Mafra tudo deixaram, até que se erguesse o actual “ex-libris” da vila:
(...) a Ilha da madeira era uma massa confusa, um gigantesco dragão deitado, respirando por quarenta mil foles, tantos os homens que ali dormem, mais os míseros das enfermarias onde não há um catre vago, salvo se estão os enfermeiros retirando alguns cadáveres, este que rebentou por dentro, este que tinha uma nascida, este que deitava sangue pela boca, este que um estupor paralisou e, segundando, matou.
XXIII, 330
A caracterização desta personagem colectiva inicia-se no capítulo dez, quando a Mafra chega a notícia da promessa do rei e do início próximo dos trabalhos. É pela boca dos familiares de Baltasar, o pai, João Francisco, e o cunhado, Álvaro Diogo, que ficamos a conhecer as motivações e funções dos homens que, vindos de perto ou de longe, demandam em Mafra a esperança de uma vida melhor ou, pelo menos, a possibilidade de encontrar algum trabalho remunerado que lhes facilite a sobrevivência. João Francisco diz a seu filho:
(...) quem agora pode ganhar bom dinheiro é o teu cunhado, vão precisar de pedreiros.”
X, 104
e Álvaro Diogo corrobora:
(...) não irá faltar trabalho a pedreiros quando começarem as obras do convento, não precisará sair da terra a procurar serviço nos arredores da vila, semanas e semanas fora de casa (...)
X, 108
Pedreiros, alvenéis, canteiros, cabouqueiros, lavrantes, carpinteiros, carreiros, serventes, ferreiros, latoeiros, vidraceiros, pintores, dezenas de ofícios acabarão representados em Mafra. Desde o primeiro momento, o narrador tece as linhas que farão de todos uma única personagem compósita, um herói estóico, solidário, mítico. Prevê-lhe desgraças:
(...) o abençoado há-de ir a Mafra também, trabalhará nas obras do convento real e ali morrerá por cair de parede, ou da peste que o tomou, ou da facada que lhe deram, ou esmagado pela estátua de S. Bruno.”
XI, 117
retrata-o colectivamente, em situação de trabalho e animalizando-o, para enfatizar o esforço que lhe é exigido a vida inteira:
(...) não haverá diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para ali porque as forças não dão para mais, e depois vem outro homem que transportará a carga até à próxima formiga, até que, como de costume, tudo termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens lugar de morte, como se vê não há diferença nenhuma.
XI, 118
manifesta a sua simpatia pelos mais humildes:
(...) o mais que por aqui há são cabouqueiros, gente de muita força e pouco mimo, havemos de tornar a passar por estas bandas daqui por uns meses (...) então veremos uma grande cidade de tábuas, maior que Mafra, quem viver verá (...) por agora bastem os toscos aposentos para neles descansarem os ossos os fatigados homens do alvião e da enxada (...)
XI, 122-123
e denuncia a violência exercida sobre eles por matriculadores, vedores ou soldados:
(...) e a partir daí já se conta que salte murro e pontapé, se não cortarem sarrafos o ar, momento em que avança a patrulha de soldados, manobra em geral suficiente para esfriar os ânimos aquecidos, ou, caso não, duas pranchadas, dois vergões na lombeira, como às mulas.
XVII, 218
Do mesmo modo, servem também o propósito de elevação desta personagem colectiva à categoria de herói a descrição minuciosa dos trabalhos, a constante referência a quem os leva a cabo, por via de pleonasmos como “multidão de homens” ou expressivas imagens como “formigueiro de gente”, e ainda a ênfase dada à denúncia da vida de miséria dos trabalhadores, que obriga as próprias crianças a um fado em tudo distinto ao dos príncipes[i]:
(...) só tem doze anos (...), este é o filho que ficou, chega à noite morto de dar serventia, andaime acima, andaime abaixo, acaba de cear e adormece logo, (...)
XVII, 210-211
Além de Baltasar e de Álvaro Diogo, destacam-se, destes milhares de homens, algumas outras personagens. Facilmente se observa que devem as mesmas ser consideradas figuras típicas, pois as suas autobiografias repetir-se-ão no tempo e na sociedade portuguesa. Individualizando-as, nomeando-as e dando-lhes as rédeas da própria enunciação:
(...) O meu nome é José Pequeno, não tenho pai, nem mãe, nem mulher que minha seja, nem sei sequer se o nome certo é este (...) apareci numa aldeia ao pé de Torres Vedras, pelo seguro o vigário baptizou-me, José é o nome de pia, o Pequeno puseram-mo depois, porque não cresci muito, com esta corcunda às costas nenhuma mulher me quis para viver (...)
XVIII, 233-234
o narrador procura humanizar o “mar de gente” que deseja erguer como herói, como verdadeira força criadora, tanto do convento de Mafra quanto da História e do mundo.
Para este processo de mitificação, contribui também a crua descrição do modo como muitos dos trabalhadores foram, por uma caprichosa e despótica vontade real[ii], arrebanhados nos quatro cantos do reino e conduzidos à força até Mafra, onde deixariam de ser homens, onde bestas também deixariam de ser e onde, afinal, seriam apenas coisas, apenas tijolos ou, pior, apenas um qualquer nada sem serventia:
Juntam-se os homens que entraram hoje, dormem onde calhar, amanhã serão escolhidos. Como os tijolos. Os que não prestarem, se foi de tijolos a carga, ficam por aí, acabarão por servir a obras de menos calado, não faltará quem os aproveite, mas, se foram homens, mandam-nos embora, em boa ou má hora, Não serves, volta para a tua terra, e eles vão, por caminhos que não conhecem, perdem-se, fazem-se vadios, morrem na estrada, às vezes roubam, às vezes matam, às vezes chegam.
XXI, 296
Por fim, é no capítulo dezanove que se recorre ao máximo de efeitos conducentes à heroicização desta gente esquecida que edificou o voto e deu o corpo à megalomania de D. João V:
(...) se estes homens e estes bois não fizerem a força necessária, todo o poder de el-rei será vento, pó e coisa nenhuma. Porém, farão a força. Foi para isso que vieram, (...)
XIX, 244
O transporte de uma pedra gigantesca, de Pêro Pinheiro para Mafra, é relatado num tom épico, como se esse trabalho hercúleo só pudesse ser comparado aos desafios que os heróis clássicos afrontavam. Antes, o narrador revela sem pejo o magro contributo que o reino podia dar à construção, denunciando ironicamente o desperdício que a mesma implicaria:
(...) e se desta pobre terra de analfabetos, de rústicos, de toscos artífices não se podem esperar supremas artes e ofícios, encomendem-se à Europa, para o meu convento de Mafra, pagando-se, com o ouro de minhas minas e mais fazendas, os recheios e ornamentos, que deixarão, como dirá o frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós, vendo-os, aos recheios e ornamentos, admirados. De Portugal não se requeira mais que pedra, tijolo e lenha para queimar e homens para a força bruta, ciência pouca.
XVIII, 228
Depois, pormenorizadas e frequentes descrições hiperbolizam as dimensões da laje, os meios empregues para a transportar, os perigos do caminho.
No fundo, é o esforço humano que acaba por se destacar, em contraste com a inépcia e a hipocrisia do poder, de modo a conduzir o leitor ao reconhecimento do sacrifício a que todos aqueles homens se prestaram, por motivos tão sem sentido que até ao próprio diabo surpreendem:
Em cima deste valado está o diabo assistindo, pasmando da sua própria inocência e misericórdia, por nunca ter imaginado suplício assim para coroação dos castigos do seu inferno.
XIX, 258-259
[i] O paralelismo antitético serve também para gerar, no leitor, a simpatia pelos mais desfavorecidos. Recorde-se, no capítulo sete, o luxo do baptizado de Maria Leonor Bárbara; no capítulo oito, o sadismo dos jogos do infante D. Francisco ou, no capítulo dez, a comparação entre a morte do sobrinho de Baltasar e a do infante D. Pedro: “(...) querendo deus, qualquer causa de morte serve, a que levará o herdeiro da coroa de Portugal será o tirarem-lhe a mama, só a infantes delicados isto aconteceria, que o filho de Inês Antónia, quando morreu, já comia pão e o mais que houvesse.” – SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, cap. X, p. 105.
[ii] A crítica pode igualmente ser dirigida ao Clero:”(...) ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições, sejam eles carpinteiros, pedreiros ou braçais, retirando-os, ainda que por violência, dos seus mesteres, e que sob nenhum pretexto os deixem ficar (...), porque nada está acima da vontade real, salvo a vontade divina, e a esta ninguém poderá invocar, que o fará em vão, porque precisamente para serviço dela se ordena esta providência, tenho dito.” – Op. cit. nota i, cap. XXI, p. 291, sublinhado nosso.
Adriano Alcantâra,
professor de Português e Francês
Escola Secundária José Saramago
(continua)
3 comentários:
Bom trabalho! Estou a gostar muito e à espera da continuação...
Obrigado.
E a lição continua. Para meu prazer.
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