sexta-feira, novembro 19, 2010

Uma personagem em construção (3)

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UMA PERSONAGEM EM CONSTRUÇÃO
Ou como, em Memorial do Convento, de José Saramago, se reescreve a História, construindo um herói com os homens que a História olvida


Adriano Alcântara
Escola Secundária José Saramago – Mafra
Janeiro de 2000

III

“É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de se afirmar nos compêndios e histórias, Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz.”
SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, 1986 , cap. XIX, p.  257

O capítulo dezanove é o mais longo do romance, pormenor sintomático quer da importância que o autor atribui ao debate sobre a condição humana[i] quer da solidariedade e atenção com que o narrador se debruça sobre as personagens que, por força das circunstâncias e do seu labor, sobrevivem oprimidas pelo poder régio e clerical, sem que a História delas acabe por registar uma nota, por pequena que seja.
Embora relacionado com os restantes três núcleos narrativos[ii], pois a presença de Baltasar e dos seus companheiros e a natureza da sua missão bastam para garantir o encadeamento, que é reforçado ainda por diversos outros meios, este capítulo evidencia uma notável unidade diegética. Essa coesão quase o autonomiza e facilita a análise das categorias da narrativa que nele mais contribuem para a construção da personagem colectiva e para a criação dos sentidos que nela se configuram.
Aqui, como no restante emaranhado tecido narrativo, aquela personagem é homogeneizada, de forma a conduzir-se o leitor à assunção da importância que ela sempre assumiu na História, apesar de, como já referimos, esta a marginalizar, perpetuando apenas os grandes vultos individuais. Pelo contrário, em Memorial do Convento, essas figuras históricas são representadas negativamente e acabam, afinal, amaldiçoadas:
(...) amaldiçoado sejas tu [o “monstro de pedra”], mais quem da terra te mandou tirar e a nós arrastar por estes ermos.
XIX, 254
Resumindo, a caracterização e a importância que na diegese se atribui às acções realizadas pela “tropa-fandanga” que é essa personagem colectiva, mais não são do que a tentativa de instaurar uma nova visão dos acontecimentos passados, com vista a devolver à História a objectividade que a ideologia dominante lhe tem subtraído, sub-repticiamente.
É num tom muito próximo da oratura[iii] que no terceiro parágrafo do capítulo dezanove se inicia a acção principal: o relato do trajecto de ida e volta entre Mafra e Pêro Pinheiro, que os trabalhadores têm de palmilhar, rompendo o equilíbrio inicial do seu já penoso quotidiano, a fim de cumprir a tarefa faraónica que lhes foi destinada:
Estava Baltasar há pouco tempo nesta sua nova vida, quando houve notícia de que era preciso ir a Pêro Pinheiro buscar uma pedra muito grande que lá estava, destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da igreja (...)
XIX, 241
A contextualização desta jornada é feita ao longo dos dois primeiros parágrafos. No primeiro, o narrador salienta a dureza do trabalho, aproximando “os homens” das bestas e descrevendo como, num voo da “máquina voadora” se veria todo o país dependente da obra, salvo aqueles que nela directamente labutam, presos
(...) ao globo terra pela lei da gravidade e da necessidade (...) , se os quisermos ver, tem de ser de mais perto.
XIX, 240
Justificado assim o ponto de vista que privilegiará na gesta que vai relatar, o narrador abandona a visão a visão panorâmica e distante que a passarola lhe facultava e aproxima-se dos homens cujas vidas pretende perpetuar. No segundo parágrafo, narra-nos então como Baltasar se envolvera também naquele trabalho, primeiro como “mula de liteira” e, depois, graças à solidariedade de José Pequeno, como boieiro.
O programa da viagem é enunciado, como vimos, no início do terceiro parágrafo, notando-se, logo aí, uma linha de sentido que aponta para a heroificação dos seiscentos homens que nela mourejaram. O discurso entretece-se de modo a evidenciar as dificuldades e perigos da empresa, que acabará por se representar como uma saga ou, no dizer de um frade, uma cruzada:
(...) levar esta pedra a Mafra é obra tão santa como foi a dos antigos cruzados quando partiram a libertar os santos lugares (...)
XIX, 262-263
De facto, para além dos pormenores descritivos, das metáforas, das hipérboles e das anáforas com que se enfatiza o gigantismo da pedra:
(...) e Manuel Milho (...) medindo-se com a laje agora tão próxima, disse, É a mãe da pedra (...)
XIX, 245
do carro em que seria transportada:
(...) espécie de nau da Índia com rodas (...)
XIX, 241
e dos trabalhos a levar a cabo:
“Não é, este, aqui, o caso de levar menos tempo a fazer do que a explicar, pelo contrário (...) É um bico-de-obra, disse o José Pequeno (...)”
XIX, 247
o próprio espaço e o tempo são tratados, como veremos, de forma a provocar, no leitor, o reconhecimento do martírio que foi, para aqueles homens, levar até Mafra aquele “monstro de pedra”. Acabarão por chegar à vila como, no dizer de Gil Vicente, ao reino chegava a maioria anónima dos marinheiros da nossa epopeia: “pelados como formigas”, numa desolação que Baltasar enfatiza, ao relativizar as dimensões da pedra, diante do tamanho descomunal da basílica:
Toda a gente se admirava com o tamanho desmedido da pedra, Tão grande. Mas Baltasar murmurou, olhando a basílica, Tão pequena.
XIX, 264
Neste processo de reabilitação histórica daquela multidão anónima é também importante a única acção secundária encaixada no relato do regresso de Pêro Pinheiro a Mafra:
Mais tarde chegou-se-lhes Manuel Milho que contou uma história, Era uma vez uma rainha que (...) não sabia se gostava, ou não, de ser o que era, porque nunca lhe tinham ensinado a ser outra coisa (...)
XIX, 251
Narrada, ao longo de quatro das sete noites que durou o trajecto, por um dos poucos companheiros de Baltasar a quem o narrador decidiu dar “vida contada”, a história da rainha e do ermitão servirá objectivos diversos, para além de aumentar o efeito de real produzido pela escrita, uma vez que não seria verosímil os homens não conversarem à noite, antes do sono.
Por um lado, permite ao autor problematizar as relações entre História e ficção, pois Manuel Milho diz que
Cada dia é um bocado de história, ninguém a pode contar toda (...)
XIX, 262
assim veiculando uma opinião que sabemos ser a de Saramago[iv]. Por outro, permite ainda ao autor, pela voz de Manuel Milho, tratar alegoricamente de temas que lhe são caros, como a igualdade entre os homens, a natureza da essência humana ou as possibilidades redentoras da revolta:
(...) que é ser não sendo o que se é, e o ermitão respondeu, ninguém pode ser senão sendo, homem e mulher não existem, só existe o que forem e a rebelião contra o que são (...)
XIX, 255
Por fim, permite também ao narrador alicerçar o já referido processo de heroicização da personagem colectiva, já que contribui para a construção de um sentido que afasta “os homens” do imobilismo característico da personagem plana e os aproxima da densidade própria da personagem redonda: a história da rainha e do ermitão acaba por dar, ao leitor, uma ideia da capacidade inventiva e das preocupações daqueles trabalhadores, que, embora analfabetos e oprimidos, nem sempre se revelam conformados ou desprovidos de capacidade de raciocínio crítico.





[i] Tópicos como a miséria, a exploração e a opressão exercidas em nome da vaidade de um “rei infame” são recorrentes neste capítulo, refractando aquilo que o autor pensa: “As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.” – SARAMAGO, José, Discursos de Estocolmo, Lisboa, Caminho, 1999, p. 38.

[ii] A história de “(..) um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra”, a história de “(...) um soldado maneta e de uma mulher que tinha poderes” e a história de “(...) um padre que queria voar e morreu doido.”, tal como se lê na contracapa do romance de Saramago.

[iii] O autor reconhece escrever “(...) a partir do discurso oral, dessa sua conversa contínua, disso que não está escrito, mas que é a comunicação das pessoas umas coma as outras.” No mesmo local, afirma ainda que aquilo a que aspira “(...) é traduzir uma simultaneidade, é dizer tudo ao mesmo tempo.” – REIS, Carlos, Diálogos com José Saramago, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 98-99.
De aí, não é de estranhar que a originalidade do seu estilo se fundamente, sobretudo, na vontade de demonstrar que “as palavras são como as cerejas” ou que, ao falar-se, há sempre um “palavra puxa palavra”, assim sendo inevitável “trazer à baila” do discurso as sentenças, os ditos, os provérbios e mesmo as lendas que comprovam a sabedoria secular da personagem que a narrativa pretende erigir como herói. Recorde-se, a este propósito, a história da rainha que não sabia se gostava de o ser, contada por Manuel Milho aos seus companheiros (XIX, 251 e seguintes).
Simultaneamente, aquela originalidade constrói-se, também, no confronto entre a referida coloquialidade e o artificialismo culto e barroco das inversões, construções anafóricas e paralelísticas, enumerações, comparações, metáforas, personificações, descrições pormenorizadas e visualistas, presentes nos períodos enormes e torrenciais, frequentemente colmatados por frases breves, sentenciosas. A ironia, essa, decorre talvez do desejo de se revelar como é ridícula e hipócrita a vida dos poderosos, em contraponto com a gesta dos dias de quem tem de “fazer pela vida”. “O último a rir é quem ri melhor”, diz o povo...

[iv] “A História que se escreve e que depois vamos ler, aquela em que vamos aprender aquilo que aconteceu, tem necessariamente que ser parcelar, porque não pode narrar, não pode explicar tudo, não pode falar de toda a gente; (...)” – REIS, Carlos, Diálogos com José Saramago, Lisboa, Caminho, 1998, p. 81.

Texto do professor Adriano Alcântara,
professor de Português e Francês na Escola Secundária José Saramago

(continua)

2 comentários:

Licínia Quitério disse...

Continuo eu, muito interessada e atenta.

LBarros disse...

Sexta-feira há mais, Lícinia :)