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quinta-feira, novembro 25, 2010

Nacos de prosa saramaguiana (8)

A mulher do médico vai lendo os letreiros das ruas, lembra-se de uns, de outros não, e chega um momento em que compreende que se desorientou e per­deu. Não há dúvida, está perdida. Deu uma volta, deu ou­tra, já não reconhece nem as ruas nem os nomes delas, então, desesperada, deixou-se cair no chão sujíssimo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as forças, desatou a chorar. Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido ha­bituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágri­mas chora-as abraçada a ele. Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas, viu que tinha diante de si um grande mapa, desses que os de­partamentos municipais de turismo espalham no centro das cidades, sobretudo para uso e tranquilidade dos visitantes, que tanto querem poder dizer aonde foram como precisam saber onde estão. Agora, estando toda a gente cega, parece fácil dar por mal empregado o dinheiro que se gastou, afinal há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendi­do, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte, só ele sabe o que lhe terá custado trazer aqui este mapa para dizer a esta mulher onde está. Não estava tão longe quanto cria, apenas se tinha desviado noutra direcção, só terás de seguir por esta rua até uma praça, aí contas duas ruas para a esquerda, de­pois viras na primeira à direita, é essa a que procuras, do número não te esqueceste. Os cães foram ficando para trás, alguma coisa os distraiu pelo caminho, ou estão muito habituados ao bairro e não querem deixá-lo, só o cão que tinha bebido as lágrimas acompanhou quem as chorara, provavel­mente este encontro da mulher e do mapa, tão bem prepa­rado pelo destino, incluía também um cão. O certo é que entraram juntos na loja, o cão das lágrimas não estranhou ver pessoas estendidas no chão, tão imóveis que pareciam mor­tas, estava habituado, às vezes deixavam-no dormir no meio delas, e quando era hora de se levantarem, quase sempre estavam vivas. Acordem, se estão a dormir, trago comida, disse a mulher do médico, mas primeiro tinha fechado a porta, não fosse ouvi-la alguém que passasse na rua. O rapazinho estrábico foi o primeiro a levantar a cabeça, não pôde fazer mais do que isso, a fraqueza não deixava, os outros tardaram um pouco mais, estavam a sonhar que eram pedras, e ninguém ignora quanto é profundo o sono delas, um simples passeio ao campo o demonstra, ali estão dormindo, meio enterradas, à espera não se sabe de que despertar. Tem, porém, a palavra comida poderes mágicos, mormente quan­do o apetite aperta, até o cão das lágrimas, que não conhe­ce linguagem, se pôs a abanar o rabo, o instintivo movimento fê-lo recordar-se que ainda não tinha feito aquilo a que es­tão obrigados os cães molhados, sacudirem-se com violência, respingando quanto estiver ao redor, neles é fácil, trazem a pele como se fosse um casaco. Água benta da mais eficaz, descida directamente do céu, os salpicos ajudaram as pedras a transformarem-se em pessoas, enquanto a mulher do mé­dico participava na operação de metamorfose abrindo um após outro os sacos de plástico. Nem tudo cheirava ao que continha, mas o perfume de uma bucha de pão duro já se­ria, falando elevadamente, a própria essência da vida.

José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

Imagem do filme "Blindness" de Fernando Meirelles


A escolha da patrona da Biblioteca da Escola Secundária José Saramago,
professora Maria Luísa Barros

Nacos de prosa saramaguiana

Mais um que se aproxima.

terça-feira, novembro 23, 2010

Como as cerejas

E porque os textos são como as cerejas, puxam e chamam uns pelos outros, aqui fica mais um naco escolhido por Lícinia Quitério também,  e que complementa o anterior poema:

Nota à 2ª edição
"Aparece esta edição de Os Poemas Possíveis dezasseis anos depois da primeira. Não é assim tanto, comparando com os dezasseis séculos que sinto ter juntado à minha idade de então. Pode-se perguntar se estes versos (palavra hoje pouco usada, mas competente para o caso) merece segunda oportunidade, ou se a não ficaram devendo a porventura mais cabais demonstrações do autor no território da ficção. Se, enfim, estaremos observando um simples e nada raro fenómeno de aproveitamento editorial, mera estratégia daquilo a que costuma chamar-se política de autores, ou se, pelo contrário, foi a constante poética do trabalho deste que legitimou a ressuscitação do livro, porque nele teriam começado a definir-se nexos, temas e obsessões que viriam a ser a coluna vertebral, estruturalmente invariável, de um corpo literário em mudança. Aceitemos a última hipótese, única que poderá tornar plausível, primeiro, e justificar, depois, este regresso poético.Poesia datada? Sem dúvida. Toda a criação cultural há-de ter logo a sua data, a que lhe é imposta pelo tempo que a produz. Mas outras datas leva sempre também, anteriores, as dos materiais herdados- quantas vezes dominantes-, e, de longe em longe, aquela impalpável data ainda por vir, aquele sentir, aquele ver e experimentar só futuro ainda. Porém, essas entrevisões são coisa apenas para génios, e, obviamente, não é deles que se trata aqui.Poesia do dia passado, da hora tarda, poesia não futuramente. E contra isto não haveria remédio. Salvo tentar trazê-la até ao seu autor, hoje, por cima de dezasseis anos e dezasseis séculos. Assim foi feito, e esta edição aparece não só revista, mas emendada também. Quase tudo nela é dito de maneira diferente, diferente é muito do que por outra maneira se diz, e não faltaram ocasiões para contrariar radicalmente o que antes fora escrito. Mas nenhum poema foi
retirado, nenhum acrescentado. É então outro livro? É ainda o mesmo? Eu diria (e com este remate me dou por explicado) que o romancista de hoje decidiu raspar com unha seca e irónica o poeta de ontem, lacrimal às vezes. Ou, para usar expressões menos metafóricas, procurou tornar Os Poemas Possíveis possíveis outra vez. Ao menos."

José Saramago, Janeiro de 1982

Nacos de prosa saramaguiana* (7)

POEMA À BOCA FECHADA
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

JOSÉ SARAMAGO, in Poemas Possíveis
A escolha de Lícina Quitério, poetisa mafrense e do mundo

* edição especial poesia

Naco de escrita

vem já aí. Desta vez a escolha da poetisa Lícinia Quitério que, salientando uma faceta menos conhecida de Saramago, aposta num naco de poesia. Não se vão embora!

sábado, novembro 20, 2010

Nacos de prosa saramaguiana (6)

A porta da residência abriu-se enfim e a cabeça redonda do cura apareceu. Que querem vocês a estas horas da noite. Os homens deixaram o portão do passal e avançaram, arrastando os pés, para a outra porta. Está alguém a morrer, perguntou o cura. Todos disseram que não senhor. Então, insistiu o servo de deus, aconchegando-se melhor com a manta, Na rua não podemos falar, disse um homem. O cura resmungou. Pois se não podem falar na rua, vão amanhã à igreja, Temos de falar agora, senhor padre, amanhã poderá ser tarde, o assunto que aqui nos trouxe é muito sério, é um assunto de igreja. De igreja, repetiu o cura, subitamente inquieto, pensando que o apodrecido travejamento do tecto tinha vindo abaixo. Sim senhor, de igreja. Então entrem, entrem. Empurrou-os para a cozinha em cuja lareira esbraseavam ainda uns restos de lenha queimada, acendeu uma candeia, sentou-se num mocho e disse. Falem. Os homens olharam uns para os outros, duvidando sobre quem deveria ser o porta-voz, mas estava claro que só tinha realmente legitimidade aquele que havia dito que ia ouvir o que se estava dizendo no grupo onde se encontravam o comandante e o cornaca. Não foi preciso votar, o homem em questão tinha tomado a palavra. Senhor padre, deus é um elefante. O padre suspirou de alívio, era preferível isto a ter caído o telhado, além do mais, a herética afirmação era de fácil resposta. Deus está em todas as suas criaturas, disse. Os homens moveram as cabeças no modo afirmativo, mas o porta-voz, muito consciente dos seus direitos e das suas responsabilidades, retorquiu. Mas nenhuma delas é deus. Era o que faltava, respondeu o cura, teríamos aí um mundo a abarrotar de deuses, e ninguém se entenderia, cada um a puxar a brasa à sua sardinha. Senhor padre, o que nós ouvimos, com estes ouvidos que a terra há-de comer, é que o elefante que aí está é deus. Quem foi que proferiu semelhante barbaridade, perguntou o cura usando uma palavra não corrente na aldeia, o que nele era claro sinal de enfado, O comandante da cavalaria e o homem que viaja em cima. Em cima de quê. De deus, do animal.

José Saramago, A Viagem do Elefante

Mais um dos meus nacos de prosa saramaguiana

Mais um naco de prosa que se aproxima

Aí vem a passos largos ou deverei dizer a patas largas?

segunda-feira, novembro 15, 2010

Nacos de Prosa Saramaguiana (5)

O sol havia acabado de sumir-se no oceano quando o homem que tinha um barco surgiu no extremo do cais. Trazia um embrulho na mão, porém vinha sozinho e cabisbaixo. A mulher da limpeza foi esperá-lo à prancha, mas antes que ela abrisse a boca para se inteirar de como lhe tinha corrido o resto do dia, ele disse, Está descansada, trago aqui comida para os dois, E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver, Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes respondeste, Que o mar é sempre tenebroso, E não lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade, Que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa. O incêndio do céu ia esmorecendo, a água arroxeou-se de repente, agora nem a mulher da limpeza duvidaria de que o mar é mesmo tenebroso, pelo menos a certas horas. Disse o homem, Deixemos as filosofias para o filósofo do rei, que para isso é que lhe pagam, agora vamos nós comer, mas a mulher não esteve de acordo, Primeiro, tens de ver o teu barco, só o conheces por fora, Que tal o encontraste, Há algumas bainhas das velas que estão a precisar de reforço, Desceste ao porão, encontraste água aberta, No fundo vê-se alguma, de mistura com o lastro, mas isso parece que é próprio, faz bem ao barco, Como foi que aprendeste essas coisas, Assim, Assim como, Como tu, quando disseste ao capitão do porto que aprenderias a navegar no mar, Ainda não estamos no mar, Mas já estamos na água, Sempre tive a ideia de que para a navegação só há dois mestres verdadeiros, um que é o mar, o outro que é o barco, E o céu, estás a esquecer-te do céu, Sim, claro, o céu, Os ventos, As nuvens, O céu, Sim, o céu.

José Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida



Naco de prosa saramaguiana escolhido pela professora Lurdes Fonseca,
Coordenadora da Biblioteca da Escola Secundária José Saramago.

Naco de prosa

Aproxima-se vertiginosamente. Este que iremos ler em seguida foi enviado pela Coordenadora da Biblioteca da nossa Escola, professora Lurdes Fonseca.

sábado, novembro 13, 2010

Nacos de prosa saramaguiana (4)

Como foi, digam-no outros que mais saibam.
Seiscentos homens agarrados desesperadamente aos doze calabres que tinham sido fixados na traseira da plataforma, seiscentos homens que sentiam, com o tempo e o esforço, ir-se-lhes aos poucos a tesura dos músculos, seiscentos homens que eram seiscentos medos de ser, agora sim, ontem aquilo foi uma brincadeira de rapazes, e a história de Manuel Milho uma fantasia, que é realmente um homem quando só for a força que tiver, quando mais não for que o medo de que lhe não chegue essa força para reter o monstro que implacavelmente o arrasta, e tudo por causa de uma pedra que não precisaria ser tão grande, com três ou dez mais pequenas se faria do mesmo modo a varanda, apenas não teríamos o orgulho de poder dizer a sua majestade, É só uma pedra, e aos visitantes, antes de passarem à outra sala, É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias. Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz.

José Saramago, Memorial do Convento.

A minha escolha.

Naco de prosa

O que se segue é um da minha preferência e um que por razões de coração perdurará para sempre na minha caixinha de nacos de prosa.

terça-feira, novembro 09, 2010

Nacos de Prosa Saramaguiana (3)

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade


E agora, José?

Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas – ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade acompanha-me desde que nasci, por desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “E agora, José?” Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atónitas. “E agora, José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.
Em todo o caso, há situações de tal modo absurdas (ou o que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.
Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: “E agora, José?”
Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme como uma dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais riqueza de apelidos e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente – “E agora, José?”
Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota – matando sem matar, sob a asa da lei ou perante a sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre. Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta – e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira. Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.
Escrevo estas palavras a muitos quilómetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas designam casos particulares de fenómeno geral: o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda a parte, uma espécie de loucura epidémica que prefere as vítimas fáceis. Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados. E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente. Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo, o que agora és.
Entretanto, José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível que os homens matem José Júnior? Será possível?
Cheguei ao fim da crónica, fiz o meu dever. “E agora, José?”

José Saramago, in A Bagagem do Viajante.

Naco de prosa escolhido pela professora Teresa Simões

Naco de prosa saramaguiana...

já de seguida. Leiam um belíssimo naco escolhido pela professora Teresa Simões. Não percam!

quinta-feira, novembro 04, 2010

Nacos de Prosa Saramaguiana (2)

O dia seguinte era domingo, e domingo é o dia de levar o cão a passear. Amor com amor se paga, parecia dizer-lhe o animal, já com a trela na boca e a postos para o passeio. Quando, já no parque, o violoncelista se encaminhava para o banco onde era costume sentar-se, viu, de longe, que uma mulher já se encontrava ali. Os bancos de jardim são livres, públicos e em geral gratuitos, não se pode dizer a quem chegou primeiro que nós, Este banco é meu, tenha a bondade de ir procurar outro. Nunca o faria um homem de boa educação como o violoncelista, e menos ainda se lhe tivesse parecido reconhecer na pessoa a famosa mulher do camarote de primeira ordem, a mulher que havia faltado ao encontro, a mulher a quem vira no meio da sala de música com as mãos cruzadas sobre o peito.
Como se sabe, aos cinquenta anos os olhos já não são de fiar, começamos a piscar, a semicerrá-los como se quiséssemos imitar os heróis do faroeste ou os navegadores de antanho, em cima do cavalo ou à proa da caravela, com a mão em pala, a esquadrinhar os horizontes distantes. A mulher está vestida de maneira diferente, de calças e casaco de pele, é com certeza outra pessoa, isto diz o violoncelista ao coração, mas este, que tem melhores olhos, diz-te que abras os teus, que é ela, e agora vê lá bem como te vais portar. A mulher levantou a cabeça e o violoncelista deixou de ter dúvidas, era ela. Bons dias, disse quando se deteve junto do banco, hoje poderia esperar tudo, mas não encontrá-la aqui, Bons dias, vim para me despedir e pedir-lhe desculpa por não ter aparecido ontem no concerto.
O violoncelista sentou-se, tirou a trela ao cão, disse-lhe Vai, e, sem olhar a mulher, respondeu, Não tenho nada que desculpar-lhe, é uma coisa que está sempre a suceder, as pessoas compram bilhete e depois, por isto ou por aquilo, não podem ir, é natural, E sobre o nosso adeus, não tem opinião, perguntou a mulher, É uma delicadeza muito grande da sua parte considerar que deveria vir despedir-se de um desconhecido, ainda que eu não seja capaz de imaginar como pôde saber que venho a este parque todos os domingos, Há poucas coisas que eu não saiba de si, Por favor, não regressemos às absurdas conversas que tivemos na quinta-feira à porta do teatro e depois ao telefone, não sabe nada de mim, nunca nos tínhamos visto antes, Lembre-se de que estive no ensaio, E não compreendo como o conseguiu, o maestro é muito rigoroso com a presença de estranhos, e agora não me venha para cá com a história de que também o conhece a ele, Não tanto como a si, mas você é uma excepção, Melhor que não o fosse, Porquê, Quer que lho diga, quer mesmo que lho diga, perguntou o violoncelista com uma veemência que roçava o desespero, Quero, Porque me apaixonei por uma mulher de quem não sei nada, que anda a divertir-se à minha custa, que irá amanhã sei lá para onde e que não voltarei a ver, É hoje que partirei, não amanhã, Mais essa, E não é verdade que tenha andado a divertir -me à sua custa, Pois se não anda, imita muito bem, Quanto a ter-se apaixonado por mim, não espere que lhe responda, há certas palavras que estão proibidas na minha boca, Mais um mistério, E não será o último, Com esta despedida vão ficar todos resolvidos, Outros poderão começar, Por favor, deixe-me, não me atormente mais, A carta, Não quero saber da carta para nada, Mesmo que quisesse não lha poderia dar, deixei-a no hotel, disse a mulher sorrindo, Pois então rasgue-a, Pensarei no que devo fazer com ela, Não precisa pensar, rasgue-a e acabou-se. A mulher pôs-se de pé. Já se vai embora, perguntou o violoncelista. Não se havia levantado, estava de cabeça baixa, ainda tinha algo para dizer. Nunca lhe toquei, murmurou, Fui eu que não quis que me tocasse, Como o conseguiu, Para mim não é difícil, Nem sequer agora, Nem sequer agora, Ao menos um aperto de mão, Tenho as mãos frias. O violoncelista ergueu a cabeça. A mulher já não estava ali.
Homem e cão saíram cedo do parque, as sanduíches foram compradas para comer em casa, não houve sestas ao sol. A tarde foi longa e triste, o músico pegou num livro, leu meia página e atirou-o para o lado. Sentou-se ao piano para tocar um pouco, mas as mãos não lhe obedeceram, estavam entorpecidas, frias, como mortas. E, quando se voltou para o amado violoncelo, foi o próprio instrumento que se lhe negou. Dormitou numa cadeira, quis afundar-se num sono interminável, não acordar nunca mais. Deitado no chão, à espera de um sinal que não vinha, o cão olhava-o. Talvez a causa do abatimento do dono fosse a mulher que apareceu no parque, pensou, afinal não era certo aquele provérbio que dizia que o que os olhos não vêem, não o sente o coração. Os provérbios estão constantemente a enganar-nos, concluiu o cão. Eram onze horas quando a campainha da porta tocou. Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir abrir. Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas noites, respondeu o músico, esforçando-se por dominar o espasmo que lhe contraía a glote, Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor. Afastou-se para a deixar passar, fechou a porta, tudo devagar, lentamente, para que o coração não lhe explodisse. Com as pernas tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse, Como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me comprometi, Suponho que veio para trazer a carta, que não a rasgou, Sim, tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma, então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que as pressas são más conselheiras, Como queira, estou ao seu dispor, Di-lo a sério, É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir, principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo de que maneira, Tem ali um piano, Nem pense nisso, sou um pianista medíocre, Ou o violoncelo, É outra coisa, sim, poderei tocar-lhe uma ou duas peças se faz muita questão, Posso escolher, perguntou a mulher, Sim, mas só o que estiver ao meu alcance, dentro das minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite número seis de bach e disse, Isto, E muito longa, leva mais de meia hora, e já começa a ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio em que tenho dificuldades, Não importa, salta-lhe por cima quando lá chegar, disse a mulher, ou nem será preciso, vai ver que tocará ainda melhor que rostropovitch. O violoncelista sorriu, Pode ter a certeza. Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovitch, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cothen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.

José Saramago, As Intermitências da Morte


Naco de prosa escolhido pela professora Ana Gonçalves.

terça-feira, novembro 02, 2010

Nacos de Prosa Saramaguiana (1)

"Falta-nos reflexão, pensamento, necessitamos do trabalho de pensar, parece-me que sem ideias não vamos a lado algum."

José Saramago, Outros Cadernos de Saramago



A escolha de Isabel Leal, jornalista da Rádio Concelho de Mafra.

Nacos de Prosa Saramaguiana

Já já de seguida teremos mais uma contribuição. Mantenha-se atento.