E se, de repente, as leituras comecassem a ser receitadas com indicações precisas e surgissem onde menos se espera? Em Espanha, na Extremadura, foi exactamente isso que fizeram numa medida de promoção da leitura, que consiste em disponibilizar em lugares inusitados, nomeadamente farmácias e hospitais, receitas de leitura com prescrição, advertências, e tudo o mais que habitualmente as bulas dos medicamentos contêm. Criativo e genial são dois adjectivos que qualificam na perfeição esta medida, em minha opinião. Na Oficina de Formação sobre Bibliotecas e Literacia, a decorrer até Julho, experimentei pela primeira vez receitar um livro. Escolhi um da minha eleição, porque nisto de receitar livros, ao contrário de alguns medicamentos, deve ser agradável, um prazer e um bálsamo para a alma. Leiam em baixo e sigam o link no fim da receita para lerem mais. Se tiverem um livro que gostassem de prescrever, atrevam-se, procurem-me aqui na Escola ou na Biblioteca e verão o vosso trabalho publicado. Até lá, leiam a receita que vos deixo.
quinta-feira, maio 31, 2007
Receitas de Leitura
Dose de Amostra
O telefone despertou-me numa fria manhã de Junho. Sentei-me na cama. A luz, lá fora, inerte e alheia, morria numa lenta gradação de cinzentos. Era triste como uma fotografia antiga. Naquela posição, sem precisar de mover a cabeça, sem precisar sequer de mover os olhos, eu via os barcos levitando na baía. Luanda em Junho pode ser uma cidade muito triste. Reconheci a voz, do outro lado, mas não me conseguia lembrar a quem pertencia.
- Aconteceu de novo...
- Quem fala?
O gritar das cigarras. Uma funda e escura alameda de acácias rubras. Fechei os olhos e voltei a ver os troncos cobertos pelas cascas das cigarras. Quando era criança achava que fossem fantasmas de cigarras. Não sabia ainda que as cigarras mudam de pele (ou de corpo) vezes sem conta. Fiz um esforço para afastar o sono. Preferia estender-me na cama e adormecer de novo. Tenho sonhos tristes. Às vezes choro enquanto durmo. Só choro, aliás, enquanto durmo. Todavia a luz, lá fora, era ainda mais triste do que as sombras dos meus sonhos mais tristes.
Composição
Passageiros em Trânsito é composto por vinte e dois contos do escritor angolano José Eduardo Agualusa, anteriormente publicados na revista do Público e agora compilados num só volume. A composição recente data de 2006. A aventura, o fantástico e a inquietude de outras latitudes são os princípios activos de base, embora outros componentes presentes contenham a procura incessante de quem somos afinal nesta travessia e alguma nostalgia encerrada no verbo partir.
Indicações
Passageiros em Trânsito está particularmente indicado para quem gosta de viajar, sente o apelo da partida e tem curiosidade acerca de paragens distantes. Também indicado para quem aprecia uma boa prosa, simples e despretensiosa, mas carregada de significado e alguma mística que espreita aqui e ali.
Contra-indicações
Não deve ser lido por indivíduos com obsessão pela segurança do aconchego do lar, cheios de certezas, desprovidos de fantasia e com tendência para a aversão a relatos ficcionais e estórias com laivos de exotismo, algumas peripécias e palavras cheias de calor e cor. O carácter breve e conciso dos contos está contra-indicado nos amantes de romances longos e densos.
Precauções
Indivíduos sugestionáveis com tendência para imergirem nas personagens devem evitar a leitura de Passageiros em Trânsito. Podem ocorrer ataques ligeiros de ansiedade de partida e excitabilidade. Verificaram-se casos raros de taquicardia e alucinações. Caso os leitores sintam uma coceira no estômago, a curiosidade a crescer dentro de si ou a procura involuntária do passaporte ou da mala de viagem devem descontinuar a leitura imediatamente. Se os sintomas persistirem mude de leitura ou corre o risco de acordar no outro lado do Atlântico.
Posologia
Passageiros em Trânsito deve ser lido em doses pequenas, ao ritmo de um conto por dia para melhores resultados e fazer jus ao tempo diferente e ritmado das latitudes em que decorre a acção. Se se sentir tentado a rumar pela leitura dentro pode ler dois ou mais. Não são conhecidos efeitos de sobredosagem. É muito bem tolerado por indivíduos imaginativos e de alma errante.
Outras apresentações
Se se deu bem com a leitura de Passageiros em Trânsito deve continuar a ler mais livros do autor como Um Estranho em Goa ou O Vendedor de Passados. Como complemento estão indicados outros relatos de viagens alicerçados na realidade de carácter não ficcional como Sul de Miguel Sousa Tavares. Recomenda-se a leitura de Mia Couto, com especial incidência no mais recente romance do escritor moçambicano O Outro Pé da Sereia.
Mais receitas de leitura aqui
O telefone despertou-me numa fria manhã de Junho. Sentei-me na cama. A luz, lá fora, inerte e alheia, morria numa lenta gradação de cinzentos. Era triste como uma fotografia antiga. Naquela posição, sem precisar de mover a cabeça, sem precisar sequer de mover os olhos, eu via os barcos levitando na baía. Luanda em Junho pode ser uma cidade muito triste. Reconheci a voz, do outro lado, mas não me conseguia lembrar a quem pertencia.
- Aconteceu de novo...
- Quem fala?
O gritar das cigarras. Uma funda e escura alameda de acácias rubras. Fechei os olhos e voltei a ver os troncos cobertos pelas cascas das cigarras. Quando era criança achava que fossem fantasmas de cigarras. Não sabia ainda que as cigarras mudam de pele (ou de corpo) vezes sem conta. Fiz um esforço para afastar o sono. Preferia estender-me na cama e adormecer de novo. Tenho sonhos tristes. Às vezes choro enquanto durmo. Só choro, aliás, enquanto durmo. Todavia a luz, lá fora, era ainda mais triste do que as sombras dos meus sonhos mais tristes.
José Eduardo Agualusa (2006), Passageiros em Trânsito, Dom Quixote
Composição
Passageiros em Trânsito é composto por vinte e dois contos do escritor angolano José Eduardo Agualusa, anteriormente publicados na revista do Público e agora compilados num só volume. A composição recente data de 2006. A aventura, o fantástico e a inquietude de outras latitudes são os princípios activos de base, embora outros componentes presentes contenham a procura incessante de quem somos afinal nesta travessia e alguma nostalgia encerrada no verbo partir.
Indicações
Passageiros em Trânsito está particularmente indicado para quem gosta de viajar, sente o apelo da partida e tem curiosidade acerca de paragens distantes. Também indicado para quem aprecia uma boa prosa, simples e despretensiosa, mas carregada de significado e alguma mística que espreita aqui e ali.
Contra-indicações
Não deve ser lido por indivíduos com obsessão pela segurança do aconchego do lar, cheios de certezas, desprovidos de fantasia e com tendência para a aversão a relatos ficcionais e estórias com laivos de exotismo, algumas peripécias e palavras cheias de calor e cor. O carácter breve e conciso dos contos está contra-indicado nos amantes de romances longos e densos.
Precauções
Indivíduos sugestionáveis com tendência para imergirem nas personagens devem evitar a leitura de Passageiros em Trânsito. Podem ocorrer ataques ligeiros de ansiedade de partida e excitabilidade. Verificaram-se casos raros de taquicardia e alucinações. Caso os leitores sintam uma coceira no estômago, a curiosidade a crescer dentro de si ou a procura involuntária do passaporte ou da mala de viagem devem descontinuar a leitura imediatamente. Se os sintomas persistirem mude de leitura ou corre o risco de acordar no outro lado do Atlântico.
Posologia
Passageiros em Trânsito deve ser lido em doses pequenas, ao ritmo de um conto por dia para melhores resultados e fazer jus ao tempo diferente e ritmado das latitudes em que decorre a acção. Se se sentir tentado a rumar pela leitura dentro pode ler dois ou mais. Não são conhecidos efeitos de sobredosagem. É muito bem tolerado por indivíduos imaginativos e de alma errante.
Outras apresentações
Se se deu bem com a leitura de Passageiros em Trânsito deve continuar a ler mais livros do autor como Um Estranho em Goa ou O Vendedor de Passados. Como complemento estão indicados outros relatos de viagens alicerçados na realidade de carácter não ficcional como Sul de Miguel Sousa Tavares. Recomenda-se a leitura de Mia Couto, com especial incidência no mais recente romance do escritor moçambicano O Outro Pé da Sereia.
Mais receitas de leitura aqui
terça-feira, maio 29, 2007
A Feira do Livro
A Feira do Livro é estar sentado debaixo de um guarda-sol às listras a dar autógrafos e a comer os gelados que a minha filha Isabel me vai trazendo de uma barraquinha três editoras adiante, preocupada com as atribulações de um pai suado, de repente da idade dela, a escrever dedicatórias, de língua de fora, numa aplicação escolar. Isto não é uma queixa: gosto das pessoas, gosto que me leiam, gosto sobretudo de conhecer as pessoas que me lêem e me ajudam a sentir que não lanço ao acaso do mar garrafas com mensagens corsárias que não se sabe onde vão ter, e gosto dos romances que escrevi. Tenho orgulho neles e tenho orgulho em mim por ter sido capaz de os fazer.
(…)
(…)
António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, D. Quixote
E para acabar a leitura da crónica, procura o livro na Biblioteca/Centro de Recursos. Caso queiras guardar para a posteridade um autógrafo de António Lobo Antunes procura-o na Feira do Livro de Lisboa no próximo dia 2 de Junho, onde estará presente para uma sessão de autógrafos no stand das Publicações Dom Quixote.
domingo, maio 20, 2007
Como o gato
Há dias sabes em que gostava de ser como o gato e que me tocasses sem desejar encontrar quaisquer sentimentos a não ser o que se exprime num espreguiçar muito lento - um vago agradecimento? - e que depois me deixasses deitado no sofá sem que nada pudesses levar da minha alma, pois nem saberias o que dela roubar...
foto: minhaEste texto é um dos meus preferidos de Pedro Paixão. Sou uma amante confessa de felinos, é certo, mas gosto da simplicidade da escrita e da forma como os descreve, usando as suas características para falar das nossas.
E quem é que nunca desejou, secreta ou assumidamente, ser como o gato: livre, belo, sedutor, elegante e independente?
Se gostaste deste texto, descobre mais sobre Pedro Paixão.
Se gostas de felinos, sugiro a leitura de Amados Gatos de José Jorge Letria. Caso prefiras os fiéis amigos, foi lançado há pouco do mesmo autor Amados Cães pela Oficina do Livro.
sábado, maio 19, 2007
Abraçar o Palácio
Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido.
José Saramago, Memorial do Convento.
O Palácio Nacional de Mafra acabou de ser abraçado por um enorme cordão humano.
Aqui fica o meu xi-coração apertadinho.
Notícia aqui
quarta-feira, maio 16, 2007
Dia da Espiga
E hoje no Dia da Espiga, feriado municipal cá no concelho, deixo-vos com uma estória de outrora, bem contada como a D. Lucinda já nos habituou e recheada de costumes e tradições das comemorações de dias da Espiga bem diferentes dos actuais.
Boa leitura e parabéns à autora!
Boa leitura e parabéns à autora!
Burricadas
I
No dia da espiga…
Em tempos que já lá vão…
Faziam-se burricadas
Que ficavam na recordação.
II
Formava-se um grupo
Para um dia bem passar
Rumo à praia da Ericeira
Para ver o lindo mar.
III
Rapazes e raparigas
Preparavam seus burrinhos
Quem não tinha burro seu
Pedia aos seus vizinhos.
IV
Arranjava-se um farnel
Peixe frito, queijo e pão
Uma pinga de bom vinho
P’ra alegrar o coração.
V
Depois de tudo ajeitado
Lá partiam… pois então
Cantando lindas cantigas
Uma delas… o malhão.
VI
A meio da viagem
E para tomar alento
Paravam no Pinhal dos Frades
Donde se avista o Convento!
VII
Era um pinhal cerrado
Nem uma casa havia
De vez em quando, um lagarto…
Toda a moça estremecia.
VIII
Mas vinham logo os rapazes
Mostrando-se todos valentes…
Mandavam-lhe uma pedrada
E elas… ficavam contentes.
IX
Recompostos do cansaço
Lá seguiam estrada fora
P’lo jeito de ver o Sol
Passava já uma hora.
X
Que alegria tamanha
À Ericeira chegar!
Iam dar de beber aos burros
E pô-los a descansar.
XI
Pagavam-se uns dez réis
Para os jumentos guardar…
No quintal duma senhora
Que era perto do mar.
XII
Chegado o grupo à praia
As botas se descalçava
Não se tirava a roupa
Porque tal não se usava…
XIII
Só de saias levantadas…
Nada mais que p’lo joelho…
Quando um rapaz espreitava
- Vira-te p’ra lá, seu fedelho…
XIV
Só usavam fatos de banho
As pessoas da cidade,
Diziam os pais de então
E era mesmo verdade.
XV
Depois do banho tomado
Só até ao joelhinho
Fazia-se uma grande roda
P’ra comer o farnelzinho…
XVI
A seguir… umas corridas
Mais alguma brincadeira
Naquele grande areal
Que linda era a Ericeira!
XVII
Era a hora da partida
O Sol dava o sinal
E já nos burros montados
P’ro ano seria igual!
XVIII
Rumo a Mafra, bem contentes,
Sem precisarem de apoio,
Alegres cantarolando
O “Bailarico Saloio”…
XIX
E eis que dando o sinal
Com os animais a zurrar
Adivinhando a chegada
Aos seus donos… ao seu lar.
XX
Cansados… mas contentes
P’lo dia bem divertido
P’ro ano haveria mais
Ficava logo prometido.
XXI
Eram assim as burricadas
Dos tempos que já lá vão
Que a memória não se apague
Que fique a recordação.
M. Lucinda Ferreira Jesus Silva Santos
I
No dia da espiga…
Em tempos que já lá vão…
Faziam-se burricadas
Que ficavam na recordação.
II
Formava-se um grupo
Para um dia bem passar
Rumo à praia da Ericeira
Para ver o lindo mar.
III
Rapazes e raparigas
Preparavam seus burrinhos
Quem não tinha burro seu
Pedia aos seus vizinhos.
IV
Arranjava-se um farnel
Peixe frito, queijo e pão
Uma pinga de bom vinho
P’ra alegrar o coração.
V
Depois de tudo ajeitado
Lá partiam… pois então
Cantando lindas cantigas
Uma delas… o malhão.
VI
A meio da viagem
E para tomar alento
Paravam no Pinhal dos Frades
Donde se avista o Convento!
VII
Era um pinhal cerrado
Nem uma casa havia
De vez em quando, um lagarto…
Toda a moça estremecia.
VIII
Mas vinham logo os rapazes
Mostrando-se todos valentes…
Mandavam-lhe uma pedrada
E elas… ficavam contentes.
IX
Recompostos do cansaço
Lá seguiam estrada fora
P’lo jeito de ver o Sol
Passava já uma hora.
X
Que alegria tamanha
À Ericeira chegar!
Iam dar de beber aos burros
E pô-los a descansar.
XI
Pagavam-se uns dez réis
Para os jumentos guardar…
No quintal duma senhora
Que era perto do mar.
XII
Chegado o grupo à praia
As botas se descalçava
Não se tirava a roupa
Porque tal não se usava…
XIII
Só de saias levantadas…
Nada mais que p’lo joelho…
Quando um rapaz espreitava
- Vira-te p’ra lá, seu fedelho…
XIV
Só usavam fatos de banho
As pessoas da cidade,
Diziam os pais de então
E era mesmo verdade.
XV
Depois do banho tomado
Só até ao joelhinho
Fazia-se uma grande roda
P’ra comer o farnelzinho…
XVI
A seguir… umas corridas
Mais alguma brincadeira
Naquele grande areal
Que linda era a Ericeira!
XVII
Era a hora da partida
O Sol dava o sinal
E já nos burros montados
P’ro ano seria igual!
XVIII
Rumo a Mafra, bem contentes,
Sem precisarem de apoio,
Alegres cantarolando
O “Bailarico Saloio”…
XIX
E eis que dando o sinal
Com os animais a zurrar
Adivinhando a chegada
Aos seus donos… ao seu lar.
XX
Cansados… mas contentes
P’lo dia bem divertido
P’ro ano haveria mais
Ficava logo prometido.
XXI
Eram assim as burricadas
Dos tempos que já lá vão
Que a memória não se apague
Que fique a recordação.
M. Lucinda Ferreira Jesus Silva Santos
Da casa
É sempre com redobrado prazer que apresento os talentos da nossa Escola. A professora Rosália Maçã, professora de Técnicas de Expressão e Comunicação e responsável pelo Atelier de Interpretação na Escola não só tem alma de artista espelhada nos vinte e talentosos anos de carreira dedicada ao teatro bem como na carreira docente, mas também lhe ocupa a alma a magia das letras. É um privilégio ter acesso às palavras até agora ocultas e com uma enorme alegria que as deixo aqui para saborearem:
e eu
esta manhã saltei da cama
pronta a lançar pedras no charco
olhei-me
olhei em meu redor
não enxerguei o charco
e eu...
eu não tinha pedras
Rosália Maçã, 1999
Aguardem que este foi apenas o primeiro poema...
sábado, maio 12, 2007
Nascer em Maio
Nasci em Maio, o mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo.
E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.(…)
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida? (…)
No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.
Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? -, às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.
E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.(…)
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida? (…)
No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.
Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? -, às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.
Manuel Alegre, (1975), A Praça da Canção, Centelha, Coimbra.
sexta-feira, maio 11, 2007
Aconteceu na Escola
No passado dia dez de Maio e, mais uma vez, da iniciativa do Núcleo de Animação da nossa Biblioteca/Centro de Recursos, teve lugar no Auditório da Escola uma palestra sobre o Memorial do Convento de José Saramago.
A palestrante foi a professora Teresa Simões, docente de Português e Francês na nossa Escola. Foi não só muito enriquecedor ouvir a professora, mas também um verdadeiro prazer que nos transportou aos tempos imemoriais contidos dentro e fora da obra, à riqueza das personagens, à problemática do autor/narrador, entre outros aspectos focados, e nos fez imergir numa das obras emblemáticas da literatura portuguesa. Quem se poderá esquecer de Baltazar Sete-Sóis unido pelo amor eterno a Blimunda Sete-Luas? Ou do Padre Bartolomeu de Gusmão com a sua Passarola e o sonho de voar?
Alunos do décimo-segundo ano leram algumas passagens de textos e devo dizer-vos que correu muito bem. Foram muito expressivos, leram com boa dicção e deixaram o auditório em silêncio, concentrado e enleado nas palavras que soltavam com convicção e talento. Aqui ficam os parabéns a todos os que participaram. Já sabem que podem encontrar o Memorial do Convento na nossa Biblioteca para (re)leitura. Agora deixo-vos com algumas imagens do evento.
A palestrante foi a professora Teresa Simões, docente de Português e Francês na nossa Escola. Foi não só muito enriquecedor ouvir a professora, mas também um verdadeiro prazer que nos transportou aos tempos imemoriais contidos dentro e fora da obra, à riqueza das personagens, à problemática do autor/narrador, entre outros aspectos focados, e nos fez imergir numa das obras emblemáticas da literatura portuguesa. Quem se poderá esquecer de Baltazar Sete-Sóis unido pelo amor eterno a Blimunda Sete-Luas? Ou do Padre Bartolomeu de Gusmão com a sua Passarola e o sonho de voar?
Alunos do décimo-segundo ano leram algumas passagens de textos e devo dizer-vos que correu muito bem. Foram muito expressivos, leram com boa dicção e deixaram o auditório em silêncio, concentrado e enleado nas palavras que soltavam com convicção e talento. Aqui ficam os parabéns a todos os que participaram. Já sabem que podem encontrar o Memorial do Convento na nossa Biblioteca para (re)leitura. Agora deixo-vos com algumas imagens do evento.
fotos: minhas
quarta-feira, maio 09, 2007
Das Bibliotecas
E hoje apresento-vos um poema da preferência da professora Lurdes Fonseca, a professora Coordenadora da nossa Biblioteca/Centro de Recursos. Certamente não será difícil adivinhar porque terá eleito este... Ora leiam e, a seguir, procurem a Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade na nossa Biblioteca, mais uma presença imprescíndivel no nosso acervo. A professora Lurdes Fonseca está certa de que não se irão arrepender e que só podem sair mais enriquecidos desta viagem pela poesia. Eu, por mim, não posso concordar mais. Boa leitura então!
Biblioteca Verde
Papai, me compra a Biblioteca Internacional
de Obras Célebres
São só 24 volumes encadernados
em percalina verde.
Meu filho, é livro demais para uma criança-
Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
Quando crescer eu compro. Agora não.
Papai, me compra agora. É em percalina verde,
só 24 volumes. Compra, compra, compra.
Fica quieto, menino, eu vou comprar.
Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca
bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com arranhão recuso, já sabe:
quero devolução de meu dinheiro.
Está bem, Coronel, ordens são ordens.
Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
vai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, mata
de pinheiros toda verde. Sou
o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não: inveja de mim mesmo.)
Ninguém mais aqui possui a colecção
das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.
Antes de ler, que bom passar a mão
no som da percalina, esse cristal
de fluída transparência: verde, verde.
Amanhã começo a ler. Agora não.
Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas, Osíris, Medusa,
Apolo nu, Vénus nua... Nossa
Senhora, tem disso tudo nos livros?
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa. Não dorme este menino.
O irmão reclama: apaga a luz, cretino!
Espermacete cai na cama, queima
a perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo
essa Biblioteca antes que peque fogo
na casa. Vai dormir, menino, antes que eu perca
a paciência e te dê uma sova. Dorme,
filhinho meu, tão fraquinho.
Mas leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco, medievo; em contos, poemas
me vejo viver. Como te devoro,
verde pastagem. Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazer de volta
à casa a qualquer hora num fechar
de páginas?
Tudo o que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio
de flauta-percalina eternamente.
Carlos Drummond de Andrade
terça-feira, maio 08, 2007
Livros com cidades
E de regresso à estante está Perseguido de Luiz Alfredo Garcia-Roza, após uma passagem breve pela minha mesa-de-cabeceira. Finda a última página de mais um romance policial, termina também um périplo pela Cidade Maravilhosa. Há quem defenda que o delegado Espinosa da 12º DP do Rio de Janeiro, bibliófilo que não dispensa uma ida ocasional aos sebos, a personagem central em torno da qual se desenvolvem seis dos seus sete policiais, não é um grande detective na senda dos clássicos, que os policiais de Garcia-Roza carecem de mais densidade e suspense, que é óbvio o desfecho e que o criminoso, assim é nos policiais, se torna evidente desde muito cedo na trama. Que seja.
Na verdade, há algo inscrito naquelas páginas que perdurará muito após a leitura da última palavra, algo que deixa o leitor inquieto, ofegante, tranquilo, descontraído ou deleitado, consoante percorra, nos passos das várias personagens, os trajectos descritos com exactidão extrema, passíveis de serem localizados em qualquer mapa do Rio de Janeiro.
Ruas, praças e morros, Copacabana e o Bairro Peixoto, o Calçadão e o mar de Ipanema, Zona Sul e Zona Norte, fundem-se no momento em que o livro se abre como o Atlântico e as personagens nos carregam, nos levam lado a lado, secretamente sussurrando-nos para embarcar na viagem encetada. Há uns dias, por exemplo, fiquei extenuada depois da corrida no Parque do Flamengo com Berenice, nada que a vista da Baía de Guanabara não consiga compensar. Certo é que Augustão me cansara também nas ladeiras de Salvador e me deixara expectante nos terreiros de candomblé. Intrépidos e incansáveis, estes detectives...
Nos livros com cidades existem roteiros ocultos emergentes do calcorrear das personagens pelos recantos mais recônditos das urbes, respeitando os seus ritmos únicos, e que, ora fugindo, ora flanando nos revelam a alma e a intimidade ausente nos áridos guias de viagens.
Na verdade, há algo inscrito naquelas páginas que perdurará muito após a leitura da última palavra, algo que deixa o leitor inquieto, ofegante, tranquilo, descontraído ou deleitado, consoante percorra, nos passos das várias personagens, os trajectos descritos com exactidão extrema, passíveis de serem localizados em qualquer mapa do Rio de Janeiro.
Ruas, praças e morros, Copacabana e o Bairro Peixoto, o Calçadão e o mar de Ipanema, Zona Sul e Zona Norte, fundem-se no momento em que o livro se abre como o Atlântico e as personagens nos carregam, nos levam lado a lado, secretamente sussurrando-nos para embarcar na viagem encetada. Há uns dias, por exemplo, fiquei extenuada depois da corrida no Parque do Flamengo com Berenice, nada que a vista da Baía de Guanabara não consiga compensar. Certo é que Augustão me cansara também nas ladeiras de Salvador e me deixara expectante nos terreiros de candomblé. Intrépidos e incansáveis, estes detectives...
Nos livros com cidades existem roteiros ocultos emergentes do calcorrear das personagens pelos recantos mais recônditos das urbes, respeitando os seus ritmos únicos, e que, ora fugindo, ora flanando nos revelam a alma e a intimidade ausente nos áridos guias de viagens.
Leonor Barros ©
foto: minha
domingo, maio 06, 2007
Dia da Mãe
Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enloqueceu ninguém...
para que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha mãe.
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enloqueceu ninguém...
para que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha mãe.
Sebastião da Gama
Também disponível na nossa Biblioteca/Centro de Recursos
quinta-feira, maio 03, 2007
Na senda dos Prémios Literários
O mundo é mais risonho quando há boas notícias para dar.
Desta vez felicitamos José Eduardo Agualusa e, mais uma vez, a língua portuguesa enriquecida com outras matizes está de parabéns. O romance O Vendedor de Passados de José Eduardo Agualusa foi galardoado com o Prémio de Ficção Estrangeira do Independent.
Desta vez felicitamos José Eduardo Agualusa e, mais uma vez, a língua portuguesa enriquecida com outras matizes está de parabéns. O romance O Vendedor de Passados de José Eduardo Agualusa foi galardoado com o Prémio de Ficção Estrangeira do Independent.
José Eduardo Agualusa é angolano, tem um percurso marcado pela mobilidade entre Angola, Portugal e Brasil e é autor de vários livros de contos e de romances, todos eles tocados pelo encanto da mestiçagem e a sedução de outras culturas. A sua obra está traduzida em várias línguas. O seu último livro Passageiros em Trânsito reúne nove contos de viagens com o colorido a que o autor nos habituou. Recomendo vivamente. José Eduardo Agualusa escreve quinzenalmente uma crónica na revista do "Público" ao Domingo.
Se quiseres ler livros do autor, procura na nossa Biblioteca/ Centro de Recursos.
terça-feira, maio 01, 2007
Próxima paragem: Estrasburgo!
No início deste ano lectivo, o professor Paulo Santos apresentou à Escola o Parlamento dos Jovens. Empenhou-se na divulgação, professores e alunos acolheram a ideia, trabalharam, empenharam-se, ultrapassaram obstáculos e barreiras e foram sendo seleccionados, enquanto outras equipas e escolas foram ficando pelo caminho. Na final nacional, realizada entre 23 e 24 de Abril passados na Assembleia da República e no Auditório do Instituto Português da Juventude no Parque das Nações em Lisboa, a equipa da nossa Escola conseguiu alcançar um lugar entre as dez primeiras escolas a nível nacional e irá assim representar o país no Parlamento Europeu em Estrasburgo, no próximo ano lectivo. Aqui ficam os parabéns aos professores Paulo Santos e Maria José Madail e às alunas que levaram a nossa escola até à final, a Joana Faustino do 10º B e Fátima Campos – 10º E. Parabéns e muito sucesso em Estrasburgo!
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