UMA PERSONAGEM EM CONSTRUÇÃO
Ou como, em Memorial do Convento, de José Saramago, se reescreve a História, construindo um herói com os homens que a História olvida
Adriano Alcântara
Escola Secundária José Saramago – Mafra
Janeiro de 2000
IV
Vai ser uma grande jornada. Daqui a Mafra, mesmo tendo el-rei mandado consertar as calçadas, o caminho é custoso, sempre a subir e a descer, ora ladeando os vales, ora empinando-se para as alturas, ora mergulhando a fundo, quem fez as contas aos quatrocentos bois e aos seiscentos homens, se as errou, foi na falta, não que estejam de sobra.”
SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, 1986, cap. XIX, p. 250
O espaço e o tempo são categorias cuja funcionalidade não se limita, no capítulo dezanove, à localização e progressão espaciais e consequente encadeamento cronológico da acção. Como já referimos, espaço e tempo contribuem também para enfatizar e enormidade da tarefa e, desse modo, para a já mencionada elevação a herói da personagem colectiva, “os homens” que a têm de executar.
Desde o início, a descrição do espaço fornece-nos índices dos perigos que, no regresso, os homens terão de vencer a pulso:
(...) nem é muito, três léguas para lá, três para cá, é certo que os caminhos não são bons (...) logo vêem que estão em terra conhecida, ainda que custosa de subir e perigosa de descer.
XIX, 241-242
As catálises relacionadas com esta categoria encontram-se muitas vezes associadas à descrição dos trabalhos, proporcionam a crítica ao poder régio:
(...) todo o mundo puxa com entusiasmo, homens e bois, pena é que não esteja D. João V no alto da subida (...)
XIX, 248
e tornam-se cada vez mais longas, detalhadas e visualistas, como se o objectivo do narrador fosse acompanhar, a cada momento, cada passo dado.
De outro modo, a adjectivação, a enumeração anafórica, a hipérbole e todas as figuras utilizadas, mais do que servirem a literariedade do discurso, reforçam uma posição ideológica propensa ao despertar sentimentos opostos no leitor, de admiração pelos trabalhadores e de recusa crítica do poder que os leva a trabalhar naquelas condições:
Lembravam-se do caminho que descia para Cheleiros, aquelas apertadas curvas, aqueles declives espantosos, aquelas empinadas encostas que caíam quase a pique sobre a estrada, Como é que será que vamos passar, murmuravam para si próprios.
XIX, 256
Ao tempo é também dada particular atenção. Cronologicamente, a jornada de regresso dura oito dias:
Entre Pêro Pinheiro e Mafra gastaram oito dias completos.
XIX, 264
enquanto, para percorrer as mesmas três léguas, “os homens” haviam levado, à ida, apenas a metade de uma manhã:
Quando Francisco Marques chegou a Pêro Pinheiro (...) já estava armado o arraial (...). A manhã estava em meio (...)
XIX, 243-244
logo assim se notando o ensejo do narrador de enfatizar a enormidade da tarefa a que foi sujeita toda aquela gente.
Os factos são, sobretudo, relatados por ordem linear, embora a anisocronia se instale, por vezes. Esse desencontro entre o tempo da história e o tempo do discurso é provocado seja por resumos, como é o caso da paragem de Francisco Marques em Cheleiros, à ida para Pêro Pinheiro, para passar um momento com a mulher; por pausas, como as suscitadas pela história contada por Manuel Milho ou, sintomaticamente, pelo tempo psicológico, que flui em consonância com a preocupação dos homens perante as adversidades do trabalho ou o pouco tempo de repouso:
Tão grande fora o sofrimento durante este arrastado dia, que todos diziam, Amanhã não pode ser pior, e no entanto sabiam que iria ser pior mil vezes.
XIX, 256
ou, ainda:
Diz-se que o mal não dura, embora, pela fadiga que traz consigo, pareça às vezes que sim, mas o que nenhuma dúvida tem, é não durar o bem sempre. Está um homem em suavíssimo torpor (...) eis senão quando soa a corneta (...) assim não há outro remédio que levantarem-se os vivos.
XIX, 249
São raras e breves, as pausas referentes a esta categoria. Porém, situando a jornada no mês de Julho, em pleno calor estival:
Mal o sol nasceu, logo se pôs quente o dia, nem admira, se Julho é.
XIX, 243
elas acabam de igual modo por funcionar como outro elemento susceptível de acentuar as dificuldades da tarefa e a coragem com que a personagem colectiva as vai enfrentando. A prolepse serve também o mesmo objectivo, nomeadamente quando a ela o narrador recorre, a fim de actualizar as desmedidas dimensões da pedra, pela boca indiferente e apressada de um guia do Palácio Nacional de Mafra, diante de um grupo de turistas:
(...) o peso da pedra da varanda da casa a que se chamará de Benedictine é de trinta e um mil e vinte e um quilos, trinta e uma toneladas em números redondos, senhoras e senhores visitantes, e agora passemos à sala seguinte, que ainda temos muito que andar.
XIX, 245
Tratando do espaço ou do tempo, as intenções do narrador são claras e decorrentes da simpatia e da solidariedade que manifesta pelos mais humildes. No fundo, escreve para os imortalizar e, nessa “cruzada”, o herói só pode constituir-se como uma totalidade:
(...) tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, (...) Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados (...)
XIX, 242
Compreende-se, daqui, que o contributo dado pelo narrador à construção da personagem colectiva é fundamental. É ele quem melhor engendra a heroificação dessa personagem e é ainda ele quem melhor tece os sentidos que permitem recolocar todas aquelas vidas atribuladas e miseráveis no lugar que a História oficial lhes nega.
O engrandecimento da personagem colectiva resulta, portanto, não apenas do tom épico aqui e ali dado à narração ou do tratamento de aspectos relacionados com o espaço e o tempo, mas sobretudo de algumas “atitudes” do sujeito narrativo. Com efeito, são frequentes os comentários como o que aqui se sublinha:
A lua nasceu mais tarde, muitos homens já dormiam, com a cabeça em cima das botas, os que as tinham.
XIX, 251
tal como as interpelações ao leitor, agora na voz do já referido e contemporâneo guia do Palácio:
(...) nem os senhores imaginam a soma de trabalho que está neste convento.
XIX, 246
ou as críticas ao poder real:
(...) e tudo por causa de uma pedra que não precisaria ser tão grande, com três ou dez mais pequenas se faria do mesmo modo a varanda, apenas não teríamos o orgulho de dizer a sua majestade, É só uma pedra (...)
XIX, 257
A essas “atitudes” recorrentes, acrescem, ainda com o mesmo objectivo, as próprias opções narrativas:
(...) aquela mulher ali é que é a viúva, não sabemos que nome tem, nem adiantaria nada à história ir lá perguntar-lhe (...)
XIX, 260
ou, finalmente, a relativização ou contestação, em nome da verdade, dos paradigmas clássicos do herói:
(...) não tardaria que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos (...), assim o tínhamos querido, porém, verdades são verdades, antes se nos agradeça não termos consentido que viesse à história quanto há de belfos e tartamudos (...), então sim, se veria o cortejo de lázaros e quasímodos que está saindo da vila de Mafra (...)
XIX, 242-243
Resumindo, neste capítulo dezanove concede-se um lugar privilegiado a uma personagem cujo papel o narrador insiste em recordar ter sido olvidado pela História que todos aprendemos na escola: o povo, “os homens” sem nada de seu. Perpetuando esse imenso grupo anónimo como efectivo construtor do convento, o narrador sobrepõe a verdade da ficção à verdade histórica, instituindo-o como um dos protagonistas do romance e não se coibindo de o divinizar:
Come-se à luz das fogueiras, e a terra está fazendo concorrência ao céu, onde lá há estrelas, aqui estão lumes, porventura ao redor delas, no princípio do tempo, se teriam também sentado os homens que arrastaram as pedras com que se fez a abóbada celeste, quem sabe se teriam também estes mesmos rostos fatigados, estas barbas crescidas, estas grossas e calosas mãos, sujas, as unhas negras de luto, como é costume dizermos, este intenso suor.
XIX, 254
Coerentemente com esta visão engrandecedora da personagem colectiva, o narrador não resiste a comparar a gigantesca laje a uma pedra de altar[i], conspurcada pelos pés calçados do frade que sobre ela prega a ladainha oficial da hipocrisia: (...) e não se dava conta o imprudente de que cometia a maior das profanações, com as sandálias ofendendo esta pedra de ara, que o é por lhe ter sido sacrificado sangue inocente (...)
XIX, 262
Como vimos, das seis centenas de homens que se deslocaram a Pêro Pinheiro, o narrador destaca alguns tipos representativos, precisamente alguns daqueles que já fizera auto-apresentar-se no capítulo dezoito. Dos objectivos que presidem a essa escolha, salientamos agora a ênfase que ela permite acrescentar ao heroísmo dessa multidão anónima, através do trágico acidente de Francisco Marques, a quem o narrador quis dar vida e voz, para depois lhe poder dar a morte, suprema hipérbole do sacrifício e do heroísmo.
Desta caracterização, salientamos por fim duas constantes, ambas confluindo para o enaltecimento da personagem. São elas não só o relembrar da miséria, da luta pela sobrevivência e da força bruta, mas também do muito humano desejo de uma outra vida melhor:
(...) se Blimunda tivesse vindo à despedida sem ter comido o seu pão, que vontade veria em cada um, a de ser outra coisa.
XIX, 243
e, finalmente, o disfemismo que predomina no retrato dos homens, pois para além de contribuir para a verosimilhança que a escrita pretende construir, servirá talvez para se opor a fealdade física à força interior, ao heroísmo que, um dia, poderá fazer de todos os homens reis e rainhas de todas as mulheres e príncipes dos trabalhos de todos.
[i] Adiante, esta identificação é reiterada: “(...) o retumbar do báculo sobre a pedra que veio de Pêro Pinheiro, lembra-se, Vêde como ela sangra, milagre, milagre, milagre (...)” – SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, cap. 24, pp. 351-352.
Texto do professor Adriano Alcântara, professor de Português e Francês na Escola Secundária José Saramago