terça-feira, novembro 30, 2010

Saramago e o Portugal de sempre


Vivi com José Saramago um dos momentos mais gratificantes da minha vida profissional. Aconteceu em Maio de 1981, quando o Círculo de Leitores, a propósito do lançamento da sua Viagem a Portugal, convidou um grupo de jornalistas a acompanhar o escritor numa deslocação ao interior do País em que ele próprio fez de cicerone. Foram três dias à descoberta de um Portugal que muitos de nós desconhecíamos, com etapas em locais deslumbrantes, como Sortelha, Marialva e Cidadelhe. Eu era um miúdo, ainda a dar os primeiros passos na profissão, e talvez por ser o benjamim do grupo tive mais facilidade em travar longos diálogos com o escritor. No início daquela que seria talvez a década mais feliz da sua vida, Saramago estava ainda longe do reconhecimento público de que gozou mais tarde. Estivera longos meses desempregado, na sequência do 25 de Novembro de 1975, e aplicara toda a sua férrea força de vontade na escrita. Desse labor nasceu a obra que confirmaria a sua vocação de romancista: Levantado do Chão, lançada meses antes.
Mas esses, para o futuro Nobel da Literatura, ainda eram tempos de incerteza. O êxito de Levantado do Chão não foi imediato: o romance foi maturando entre o público e só ganhou projecção à medida que se sucediam as críticas favoráveis, com semanas de intervalo. O lançamento da Viagem a Portugal ocorreu nessa altura em que conheci pessoalmente Saramago e fui testemunha directa da paixão que o escritor tinha pelo País. Aqui e ali, revoltava-se com atentados notórios à nossa memória histórica. Uma vez e outra, maravilhava-se perante jóias do nosso património natural e cultural, procurando transmitir esse deslumbramento aos seus companheiros de jornada.
 Publicada a reportagem no jornal onde então trabalhava, liguei ao escritor, pedindo-lhe uma entrevista. E ele acedeu de pronto. Era o tempo do balanço de Levantado do Chão, o Memorial do Convento vinha a caminho. Longe da imagem pública que transmitiu nos anos posteriores, Saramago era uma pessoa tímida, que procurava disfarçar essa característica - reflectida também numa ligeira gaguez - com um rosto fechado e até um pouco duro. Mas os seus traços fisionómicos logo se suavizavam à medida que a conversa progredia e se estabeleciam pontos de contacto com o interlocutor. Lembro-me de lhe ter dito na altura que também o apreciava como poeta: os seus Poemas Possíveis (1966), que lera pouco antes, deixaram-me uma excelente impressão. "Agradeço-lhe, mas sei que nunca serei mais do que um poeta mediano", disse-me. Não voltou a editar outro livro de poesia.
Depois dessa longa entrevista, seguiu-se outra, por ocasião do lançamento d' O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Guardo uma grata memória de uma tarde passada no seu apartamento na Rua da Esperança, em Lisboa, com a conversa a fluir para o gravador ao som das partituras de Bach e Mozart que enchiam a casa. Era já evidente, nessa altura, a consagração literária do escritor que 14 anos mais tarde se tornaria o único autor em língua portuguesa até hoje distinguido pela Academia de Estocolmo.
 Saí de Portugal, andei longos anos fora. Só voltei a ver José Saramago depois do Nobel, quando o escritor foi recebido no Diário de Notícias com uma estrondosa ovação dos jornalistas, por iniciativa de Mário Bettencourt Resendes, então director do jornal. Um gesto que pôs fim simbólico a uma traumática etapa da vida do centenário periódico onde Saramago, enquanto director-adjunto, escreveu alguns dos mais inflamados editoriais do Verão quente de 1975 - textos que o perseguiram durante o resto da vida.
Nunca partilhei das ideias políticas de Saramago nem apreciei um certo culto narcísico que o escritor foi alimentando nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao Nobel, aliás bem patentes em dezenas de páginas dos seus Cadernos de Lanzarote. Alguns dos seus livros são projectos falhados, como Jangada de Pedra ou A Caverna (que deixei a meio, farto de tanto ataque primário ao "capitalismo"). Mas é incontestável o lugar na história da literatura portuguesa do homem que nos legou o Memorial do Convento, o Ensaio sobre a Cegueira e As Intermitências da Morte, notável novela-testamento em que de algum modo ironizava com o seu próprio destino físico. 
Mas o meu livro preferido será sempre a Viagem a Portugal: costumo ter à mão e consulto com frequência o meu exemplar da primeira edição, com uma amável dedicatória do autor. Recordação daqueles três dias inesquecíveis e testemunho perene do amor de José Saramago pelo Portugal profundo, pelo Portugal de sempre.

E a seguir...

temos um excelente texto do Pedro Correia, meu companheiro de escrita blogosférica e grande mentor do Delito de Opinião. Não perca um testemunho cheio de sensibilidade escrito no dia da morte de Saramago.

segunda-feira, novembro 29, 2010

Estar ali e já não estar

Morte. Fim do caminho. Passagem para um outro estádio. Ordem natural das coisas. Lei da vida. Momento fugaz em que os olhos se encerram para todo o sempre, o corpo se abandona ao sono metafórico de silêncios infindáveis, a alma se eleva, para alguns, e se desprende para mais aventuras etéreas, renascimento ou apenas, como dizia Saramago “a diferença entre estar e já não estar”. Seja qual for a acepção e o significado da morte é consensual que a morte é sempre um fim e um fim que acarreta consigo um início. Depois da morte há uma outra vida. Sempre. Rituais que se desaprendem e outros que se adquirem por via da ausência irreparável do corpo. Aprendizagens lentas a espaços em branco e vozes que ecoam apenas na memória. Lugares vazios que surpreendem os que sobrevivem e os cutucam no ombro nas mais inusitadas situações, tão comezinhas por vezes, e, contudo, sempre tão prenhes desse espaço dolorosamente em branco que o abandono do corpo e a entrega do alma ao criador significa. “Estar e já não estar”.
A morte de um escritor representa uma morte dupla para o leitor muito além da dicotomia “estar e já não estar”. Se por um lado representa a morte do ser humano e de um ser humano, o homem público, e não raras vezes endeusado pelo culto icónico da personalidade, seguidores que derramam lágrimas pungentes pelo súbito “estar ali e já não estar”, por outro, tem como consequência, a morte dos livros, a mão que deixa de desenhar letras e alimentar a compulsão do leitor. O fim da criação de universos e tramas para depois os derramar em palavras e mundos cuidadosamente gerados pelo talento genial de escrevedores de universos constitui a pena máxima, uma ausência irreparável. A morte de um escritor é sempre uma tragédia para os seus leitores. Tal como os de que gostamos e que deixam atrás de si um rasto de absurda ausência, os escritores espalham um silêncio doloroso de novas letras e universos e deixam órfãos os seus leitores.
Este Novembro foi pois um Novembro mais triste. Não houve voz dissonante, crítica nem fúria. Não houve a procura incessante do próximo livro, a espera como um nervoso fininho na alma, e o prazer indizível de ter mais um Saramago entre mãos e esperar mais um belo naco de prosa, um excerto polémico a agitar mentes ou uma estória contada seu estilo ímpar. E ouviu-se um enorme silêncio branco que como um manto se abateu sobre os leitores. Sós e órfãos. Estar ali e já não estar.


Caricatura de Hermínio Felizardo a quem agradeço a autorização para publicação.

A seguir...

um texto sobre a Morte. Meu, desta vez.

domingo, novembro 28, 2010

Ainda Saramago

SOMOS PORTUGUESES. Pois somos. E sendo um povo de uma nação velha de mais de oitocentos anos continuamos a ser uns incorrigíveis provincianos. Talvez por sermos tão velhos.
Não há nada nesta vida, por mais banal, que nos não faça nascer ao canto do olho uma pequenina lágrima, represente isso a resposta a um elogio, a uma escondida vaidade ou até a um longínquo e temo aceno.
Habituámo-nos a ser ignorados, vilipendiados, e a levarmos a discussão dos problemas que assolam a nossa existência, ou as comemorações das alegrias que amiúde a amenizam, como verdadeiras lutas sem quartel, fruto de rivalidades escondidas, de invejas reprimidas e, muitas vezes, de complexos vários, que tendo origem nos momentos mais distantes do passado individual acabam por só se revelarem anos volvidos sob a forma de manifestações colectivas.
E assim em quase tudo o que diz respeito a Portugal e às suas gentes, às vitórias e às derrotas em que quantas vezes somos involuntariamente envolvidos.
Em séculos passados foram os Descobrimentos, como antes tinha sido a formação de Portugal ou a reconquista cristã da Península que justificaram as celebrações. Noutras ocasiões também tivemos festejos para comemorar vitórias morais. Em1966 foi um terceiro lugar num campeonato do mundo de futebol que serviu para nos sentirmos como heróis do universo. Fomos quase campeões do mundo. E, além do mais, já tínhamos o Camões, o Gama e o Afonso de Albuquerque, o Santo António de Lisboa, que os italianos nos roubaram e agora todos dizem o Magalhães, a quem nós não dávamos emprego e que depois de ter ficado famoso a trabalhar para os castelhanos quisemos gritar aos quatro ventos que afinal era dos nossos, e tantos outros.
Enfim, hoje também temos novos heróis. Alguns foram-nos legados pelo 25 de Abril. Outros, que já vinham do tempo da outra senhora, foram reciclados e adaptados à democracia, como o ministro Veiga Simão. E até houve alguns pides, legionários e membros, da extinta Mocidade Portuguesa que alugaram novas convicções para se safarem. Todos eles passaram a integrar a galeria de personalidades mais ou menos brilhantes, mais ou menos obscuras, que fizeram e fazem a nossa história, mas todas elas são muito lusíadas, não sendo por isso que deixamos de nos orgulhar dos nossos heróis e dos seus êxitos.
E, às vezes sem razão, continuamos a orgulhamo-nos por entendermos que são eles que nos definem, que contribuem para a divulgação do nosso espírito e da nossa maneira de estar na vida.
Desta vez foi o José Saramago que serviu de pretexto para a euforia nacional. Infelizmente, a atribuição do Nobel àquele escritor não foi acompanhada de uma retumbante vitória futebolística sobre a selecção romena, na jornada de qualificação para o europeu de futebol, nem da transferência de mais um jogador para o estrangeiro por valores astronómicos, pois que de outro modo a festa teria sido mais rija.
Não que _ Saramago não tivesse direito ao seu Nobel; que, ao que parece, também é nosso, de Lanzarote, de Madrid, da Pilar dei Rio, dos seus editores, de Fidel Castro, das literaturas ibero-americanas, da Península, de Jorge Sampaio, de Fernando Gomes, da Força Aérea Portuguesa, do homem da banca dos jornais que vendia o Diário de Notícias quando o agora tolerante escritor andava por lá a sanear os reaccionários, do irreal D. Duarte, que apesar das blasfémias também ficou satisfeito, de Carvalhas, que exulta de cada vez que um comunista ganha o Nobel, dos contribuintes portugueses, dos pobres de Calcutá e dos livreiros que vão ganhar rios de dinheiro. Escusava-se era de embarcar nesta emulização colectiva do Saramago e da sua obra, por muito meritória que seja e, discutivelmente, o é.
Pode ser que não esteja a ver as coisas pelo prisma correcto, mas não sendo eu capaz de alinhar na patrioteira que ciclicamente se apodera de todos nós, tenho alguma dificuldade em perceber o exagero de certas manifestações.
Acho perfeitamente natural que os escritores portugueses, os poetas, os trabalhadores da língua, o país em geral, queiram homenagear o José Saramago. Consta que foi um trabalhador incansável durante toda a sua vida, que lutou pelo que sempre acreditou, do mesmo modo que alinhou com os comunistas nos tempos áureos do PREC e depois da queda do Muro de Berlim, o que apesar do seu talento e de demonstrar alguma coerência poderá não ter servido para prestigiar as letras portuguesas, a sua inteligência e o nome de Portugal. Até aí tudo bem. Goste-se ou não se goste, é preciso dar o seu a seu dono.
Contudo, creio ser perfeitamente descabido que o Presidente da República, aquele que devia ser o primeiro a manter a serenidade, a calma e a sensatez, tenha resolvido, como bem sublinhou o escritor no agradecimento, prometer a atribuição de uma condecoração apenas reservada a chefes de Estado, a qual, para já, ficou dependente de uma alteração legislativa. Ou que um jacto da Força Aérea tenha ido a Madrid buscar o escritor. Mesmo admitindo-se que isso seja mais razoável do que seria um avião fazer uma escala propositada para ir buscar a mulher de um ministro que foi às compras.
É claro que ele agora é o maior, embora muito provavelmente a maioria daqueles que se reclama seu leitor não perceba o alcance do que ele escreve nem tenha paciência para levar a leitura de um dos seus livros até ao fim. Isso são coisas que fazem parte da iliteracia nacional.
Que tantas autarquias reclamassem um escritor como seu não constitui motivo de alarme. Isso não deve importunar demasiado Saramago nem preocupar a generalidade dos cidadãos. Dos autarcas que temos não virá grande mal. São na sua maioria inofensivos e querem o bem das suas gentes. Apesar de se dizer de alguns que são analfabetos e corruptos.
O grave é que o Nobel da Literatura já cá cante do mesmo modo que cantaria uma vitória num hipotético campeonato do mundo de futebol. No caso dos futebolistas ninguém estranharia que eles fossem passeados pelo país como verdadeiros troféus, habituados como estão a serem negociados e exibidos para deleite da plebe pêlos estádios desse mundo. Tenho pena é que o Nobel acabe também por servir apenas para isso. Passear, Saramago pelo país, oferecer-lhe uns almoços e jantares e prendá-lo com medalhas e condecorações não é garantia de que o país passe a ler mais e melhor. Além de demonstrar pequenez e amor ao fútil.
Mesmo desvalorizado, excessivamente politizado e com critérios de atribuição que por vezes roçarão o grotesco — essa é a minha opinião—, o Nobel ainda é um prémio cuja atribuição a um português — compadrios à parte — não pode deixar de nos honrar. Lamentável é que estas ocasiões sejam o registo para a posteridade de toda a nossa pindériquisse, de toda a nossa falta de tino, de comedimento e da humildade que constantemente apregoamos.
E por falar em humildade, custa-me aceitar a vaidade com que o escritor afirma a sua, participando nas manifestações mais sinceras do mesmo modo que participa nas mais serôdias. Não porque aquelas sejam mais genuínas e estas mais institucionais; mas apenas porque se as instituições e os políticos não têm o distanciamento necessário em relação à feliz graça para evitarem o inqualificável espectáculo gerado pela simples atribuição de um prémio, é disto mesmo que se trata, eu esperaria que um escritor da estirpe de um Saramago não se deixasse envolver pelas manifestações de grandiosidade com que o regime resolveu brindá-lo.
Dele não se exige que reparta o prémio, embora a nós, eternos pelintras, isso possa parecer estranho. E também não se exige que de hoje em diante deixe de ser quem sempre foi, que se mude para Portugal e renegue as suas convicções. Muito menos exigir-lhe que passe a fazer discursos gongóricos para se fazer ouvir, agradar ao poder político ou pregar ad eternum a sua doutrina da miséria planificada. Deus nos livre dessa sina.
Mas parecer-me-ia natural que os seus leitores lhe exigissem algum distanciamento, de modo a que ele não se deixasse comover pelas homenagens. Acima de tudo seria bom que fosse capaz de manter a lucidez, evitando a sua perversa emulização, ao contrário do que fizeram alguns dos seus camaradas e por muito que isso lhe custe.
O Nobel há muito tempo que deixou de definir um escritor. E nunca definiu um homem. Mas pode ser que um dia um homem que também seja escritor venha a defini-lo. Antes que ele se extinga, o dinheiro acabe ou, quem sabe, os prémios lhe dificultem a escrita. Conviria fazê-lo. A bem da literatura e dos que merecendo um Nobel nunca foram contemplados com a taluda.
Estaria então justificada a sua não atribuição a todos os que cegaram com os olhos postos na Humanidade, de bolsos vazios e sem conhecerem Estocolmo.

Sérgio de Almeida Correia, dos blogues Delito de OpiniãoO Bacteriófago

Texto publicado em 30 de Outubro de 1998,
no rescaldo da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago.

Já de seguida...

mais um texto a não perder do meu companheiro de escrita no Delito de Opinião, Sérgio Correia de Almeida.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Uma personagem em construção (4)

UMA PERSONAGEM EM CONSTRUÇÃO
Ou como, em Memorial do Convento, de José Saramago, se reescreve a História, construindo um herói com os homens que a História olvida


Adriano Alcântara
Escola Secundária José Saramago – Mafra
Janeiro de 2000

IV


Vai ser uma grande jornada. Daqui a Mafra, mesmo tendo el-rei mandado consertar as calçadas, o caminho é custoso, sempre a subir e a descer, ora ladeando os vales, ora empinando-se para as alturas, ora mergulhando a fundo, quem fez as contas aos quatrocentos bois e aos seiscentos homens, se as errou, foi na falta, não que estejam de sobra.”
SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, 1986, cap. XIX, p. 250


O espaço e o tempo são categorias cuja funcionalidade não se limita, no capítulo dezanove, à localização e progressão espaciais e consequente encadeamento cronológico da acção. Como já referimos, espaço e tempo contribuem também para enfatizar e enormidade da tarefa e, desse modo, para a já mencionada elevação a herói da personagem colectiva, “os homens” que a têm de executar.
Desde o início, a descrição do espaço fornece-nos índices dos perigos que, no regresso, os homens terão de vencer a pulso:
(...) nem é muito, três léguas para lá, três para cá, é certo que os caminhos não são bons (...) logo vêem que estão em terra conhecida, ainda que custosa de subir e perigosa de descer.
XIX, 241-242
As catálises relacionadas com esta categoria encontram-se muitas vezes associadas à descrição dos trabalhos, proporcionam a crítica ao poder régio:
(...) todo o mundo puxa com entusiasmo, homens e bois, pena é que não esteja D. João V no alto da subida (...)
XIX, 248
e tornam-se cada vez mais longas, detalhadas e visualistas, como se o objectivo do narrador fosse acompanhar, a cada momento, cada passo dado.
De outro modo, a adjectivação, a enumeração anafórica, a hipérbole e todas as figuras utilizadas, mais do que servirem a literariedade do discurso, reforçam uma posição ideológica propensa ao despertar sentimentos opostos no leitor, de admiração pelos trabalhadores e de recusa crítica do poder que os leva a trabalhar naquelas condições:
Lembravam-se do caminho que descia para Cheleiros, aquelas apertadas curvas, aqueles declives espantosos, aquelas empinadas encostas que caíam quase a pique sobre a estrada, Como é que será que vamos passar, murmuravam para si próprios.
XIX, 256
Ao tempo é também dada particular atenção. Cronologicamente, a jornada de regresso dura oito dias:
Entre Pêro Pinheiro e Mafra gastaram oito dias completos.
XIX, 264
enquanto, para percorrer as mesmas três léguas, “os homens” haviam levado, à ida, apenas a metade de uma manhã:
Quando Francisco Marques chegou a Pêro Pinheiro (...) já estava armado o arraial (...). A manhã estava em meio (...)
XIX, 243-244
logo assim se notando o ensejo do narrador de enfatizar a enormidade da tarefa a que foi sujeita toda aquela gente.
Os factos são, sobretudo, relatados por ordem linear, embora a anisocronia se instale, por vezes. Esse desencontro entre o tempo da história e o tempo do discurso é provocado seja por resumos, como é o caso da paragem de Francisco Marques em Cheleiros, à ida para Pêro Pinheiro, para passar um momento com a mulher; por pausas, como as suscitadas pela história contada por Manuel Milho ou, sintomaticamente, pelo tempo psicológico, que flui em consonância com a preocupação dos homens perante as adversidades do trabalho ou o pouco tempo de repouso:
Tão grande fora o sofrimento durante este arrastado dia, que todos diziam, Amanhã não pode ser pior, e no entanto sabiam que iria ser pior mil vezes.
XIX, 256
ou, ainda:
Diz-se que o mal não dura, embora, pela fadiga que traz consigo, pareça às vezes que sim, mas o que nenhuma dúvida tem, é não durar o bem sempre. Está um homem em suavíssimo torpor (...) eis senão quando soa a corneta (...) assim não há outro remédio que levantarem-se os vivos.
XIX, 249
São raras e breves, as pausas referentes a esta categoria. Porém, situando a jornada no mês de Julho, em pleno calor estival:
Mal o sol nasceu, logo se pôs quente o dia, nem admira, se Julho é.
XIX, 243
elas acabam de igual modo por funcionar como outro elemento susceptível de acentuar as dificuldades da tarefa e a coragem com que a personagem colectiva as vai enfrentando. A prolepse serve também o mesmo objectivo, nomeadamente quando a ela o narrador recorre, a fim de actualizar as desmedidas dimensões da pedra, pela boca indiferente e apressada de um guia do Palácio Nacional de Mafra, diante de um grupo de turistas:
(...) o peso da pedra da varanda da casa a que se chamará de Benedictine é de trinta e um mil e vinte e um quilos, trinta e uma toneladas em números redondos, senhoras e senhores visitantes, e agora passemos à sala seguinte, que ainda temos muito que andar.
XIX, 245
Tratando do espaço ou do tempo, as intenções do narrador são claras e decorrentes da simpatia e da solidariedade que manifesta pelos mais humildes. No fundo, escreve para os imortalizar e, nessa “cruzada”, o herói só pode constituir-se como uma totalidade:
(...) tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, (...) Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados (...)
XIX, 242
Compreende-se, daqui, que o contributo dado pelo narrador à construção da personagem colectiva é fundamental. É ele quem melhor engendra a heroificação dessa personagem e é ainda ele quem melhor tece os sentidos que permitem recolocar todas aquelas vidas atribuladas e miseráveis no lugar que a História oficial lhes nega.
O engrandecimento da personagem colectiva resulta, portanto, não apenas do tom épico aqui e ali dado à narração ou do tratamento de aspectos relacionados com o espaço e o tempo, mas sobretudo de algumas “atitudes” do sujeito narrativo. Com efeito, são frequentes os comentários como o que aqui se sublinha:
A lua nasceu mais tarde, muitos homens já dormiam, com a cabeça em cima das botas, os que as tinham.
XIX, 251
tal como as interpelações ao leitor, agora na voz do já referido e contemporâneo guia do Palácio:
(...) nem os senhores imaginam a soma de trabalho que está neste convento.
XIX, 246
ou as críticas ao poder real:
(...) e tudo por causa de uma pedra que não precisaria ser tão grande, com três ou dez mais pequenas se faria do mesmo modo a varanda, apenas não teríamos o orgulho de dizer a sua majestade, É só uma pedra (...)
XIX, 257
A essas “atitudes” recorrentes, acrescem, ainda com o mesmo objectivo, as próprias opções narrativas:
(...) aquela mulher ali é que é a viúva, não sabemos que nome tem, nem adiantaria nada à história ir lá perguntar-lhe (...)
XIX, 260
ou, finalmente, a relativização ou contestação, em nome da verdade, dos paradigmas clássicos do herói:
(...) não tardaria que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos (...), assim o tínhamos querido, porém, verdades são verdades, antes se nos agradeça não termos consentido que viesse à história quanto há de belfos e tartamudos (...), então sim, se veria o cortejo de lázaros e quasímodos que está saindo da vila de Mafra (...)
XIX, 242-243
Resumindo, neste capítulo dezanove concede-se um lugar privilegiado a uma personagem cujo papel o narrador insiste em recordar ter sido olvidado pela História que todos aprendemos na escola: o povo, “os homens” sem nada de seu. Perpetuando esse imenso grupo anónimo como efectivo construtor do convento, o narrador sobrepõe a verdade da ficção à verdade histórica, instituindo-o como um dos protagonistas do romance e não se coibindo de o divinizar:
Come-se à luz das fogueiras, e a terra está fazendo concorrência ao céu, onde lá há estrelas, aqui estão lumes, porventura ao redor delas, no princípio do tempo, se teriam também sentado os homens que arrastaram as pedras com que se fez a abóbada celeste, quem sabe se teriam também estes mesmos rostos fatigados, estas barbas crescidas, estas grossas e calosas mãos, sujas, as unhas negras de luto, como é costume dizermos, este intenso suor.
XIX, 254
Coerentemente com esta visão engrandecedora da personagem colectiva, o narrador não resiste a comparar a gigantesca laje a uma pedra de altar[i], conspurcada pelos pés calçados do frade que sobre ela prega a ladainha oficial da hipocrisia:
(...) e não se dava conta o imprudente de que cometia a maior das profanações, com as sandálias ofendendo esta pedra de ara, que o é por lhe ter sido sacrificado sangue inocente (...)
XIX, 262
Como vimos, das seis centenas de homens que se deslocaram a Pêro Pinheiro, o narrador destaca alguns tipos representativos, precisamente alguns daqueles que já fizera auto-apresentar-se no capítulo dezoito. Dos objectivos que presidem a essa escolha, salientamos agora a ênfase que ela permite acrescentar ao heroísmo dessa multidão anónima, através do trágico acidente de Francisco Marques, a quem o narrador quis dar vida e voz, para depois lhe poder dar a morte, suprema hipérbole do sacrifício e do heroísmo.
Desta caracterização, salientamos por fim duas constantes, ambas confluindo para o enaltecimento da personagem. São elas não só o relembrar da miséria, da luta pela sobrevivência e da força bruta, mas também do muito humano desejo de uma outra vida melhor:
(...) se Blimunda tivesse vindo à despedida sem ter comido o seu pão, que vontade veria em cada um, a de ser outra coisa.
XIX, 243
e, finalmente, o disfemismo que predomina no retrato dos homens, pois para além de contribuir para a verosimilhança que a escrita pretende construir, servirá talvez para se opor a fealdade física à força interior, ao heroísmo que, um dia, poderá fazer de todos os homens reis e rainhas de todas as mulheres e príncipes dos trabalhos de todos.



[i] Adiante, esta identificação é reiterada: “(...) o retumbar do báculo sobre a pedra que veio de Pêro Pinheiro, lembra-se, Vêde como ela sangra, milagre, milagre, milagre (...)” – SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, cap. 24, pp. 351-352.


Texto do professor Adriano Alcântara, professor de Português e Francês na Escola Secundária José Saramago

Uma personagem em construção

A não perder a quarta e última parte do texto do professor Adriano Alcântara. Já de seguida.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Blindness


O remate natural para o naco de prosa escolhido pela professora Maria Luísa Barros. Um filme obrigatório.

Nacos de prosa saramaguiana (8)

A mulher do médico vai lendo os letreiros das ruas, lembra-se de uns, de outros não, e chega um momento em que compreende que se desorientou e per­deu. Não há dúvida, está perdida. Deu uma volta, deu ou­tra, já não reconhece nem as ruas nem os nomes delas, então, desesperada, deixou-se cair no chão sujíssimo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as forças, desatou a chorar. Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido ha­bituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágri­mas chora-as abraçada a ele. Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas, viu que tinha diante de si um grande mapa, desses que os de­partamentos municipais de turismo espalham no centro das cidades, sobretudo para uso e tranquilidade dos visitantes, que tanto querem poder dizer aonde foram como precisam saber onde estão. Agora, estando toda a gente cega, parece fácil dar por mal empregado o dinheiro que se gastou, afinal há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendi­do, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte, só ele sabe o que lhe terá custado trazer aqui este mapa para dizer a esta mulher onde está. Não estava tão longe quanto cria, apenas se tinha desviado noutra direcção, só terás de seguir por esta rua até uma praça, aí contas duas ruas para a esquerda, de­pois viras na primeira à direita, é essa a que procuras, do número não te esqueceste. Os cães foram ficando para trás, alguma coisa os distraiu pelo caminho, ou estão muito habituados ao bairro e não querem deixá-lo, só o cão que tinha bebido as lágrimas acompanhou quem as chorara, provavel­mente este encontro da mulher e do mapa, tão bem prepa­rado pelo destino, incluía também um cão. O certo é que entraram juntos na loja, o cão das lágrimas não estranhou ver pessoas estendidas no chão, tão imóveis que pareciam mor­tas, estava habituado, às vezes deixavam-no dormir no meio delas, e quando era hora de se levantarem, quase sempre estavam vivas. Acordem, se estão a dormir, trago comida, disse a mulher do médico, mas primeiro tinha fechado a porta, não fosse ouvi-la alguém que passasse na rua. O rapazinho estrábico foi o primeiro a levantar a cabeça, não pôde fazer mais do que isso, a fraqueza não deixava, os outros tardaram um pouco mais, estavam a sonhar que eram pedras, e ninguém ignora quanto é profundo o sono delas, um simples passeio ao campo o demonstra, ali estão dormindo, meio enterradas, à espera não se sabe de que despertar. Tem, porém, a palavra comida poderes mágicos, mormente quan­do o apetite aperta, até o cão das lágrimas, que não conhe­ce linguagem, se pôs a abanar o rabo, o instintivo movimento fê-lo recordar-se que ainda não tinha feito aquilo a que es­tão obrigados os cães molhados, sacudirem-se com violência, respingando quanto estiver ao redor, neles é fácil, trazem a pele como se fosse um casaco. Água benta da mais eficaz, descida directamente do céu, os salpicos ajudaram as pedras a transformarem-se em pessoas, enquanto a mulher do mé­dico participava na operação de metamorfose abrindo um após outro os sacos de plástico. Nem tudo cheirava ao que continha, mas o perfume de uma bucha de pão duro já se­ria, falando elevadamente, a própria essência da vida.

José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

Imagem do filme "Blindness" de Fernando Meirelles


A escolha da patrona da Biblioteca da Escola Secundária José Saramago,
professora Maria Luísa Barros

Nacos de prosa saramaguiana

Mais um que se aproxima.

quarta-feira, novembro 24, 2010

Ratos e homens

Reza a lenda que corria o ano da graça de 1948 quando um jornalista, João Paulo Freire de seu nome, lançou a maldição sobre Mafra. Num artigo publicado no Jornal de Notícias surgia o rastilho de uma bomba com contornos nunca explicados. O jornalista descrevia o que era estar numa das janelas dos torreões do Palácio de Mafra e ver as “enormes ratas” a passear no fosso que circunda o monumento. Esse momento de inspiração – que muitos atribuem a uma hipotética e nunca provada encomenda da gigante Bayer – faria com que esta terra se tornasse nacionalmente conhecida. Afinal que outro sítio neste Portugal precisaria de ser evacuado num raio de 40 quilómetros para que os potentes raticidas fizessem efeito nesses bichos bestiais, capazes de feitos horríveis como é o caso dos dois “magalas”? Reza outra lenda, que deriva da primeira, que um soldado já meio bebido caiu no fosso do Palácio, um companheiro de armas que o acompanhava, juram as fontes ouvidas nesta lenda, escuta-o gritar e pedir socorro. O amigo valente do azarado soldado corre para o socorrer, desce pelos calabouços e sai por uma porta que dá acesso ao fosso onde, ali chegado, ainda vê os “ratos do tamanho de cães” devorarem o amigo. Dizem os relatos da época que o horror foi tanto que o segundo soldado tentou fugir, sem êxito já se vê, e assim duas mortes ficaram associadas aos bichos. Foi um ápice até aparecerem “estórias” que aproveitavam coisas reais que bem vestidas davam força à invenção. Ele era os cozinheiros da Escola Prática de Infantaria que atiravam todos os dias os restos da comida para os subterrâneos para evitar que aquela massa desconhecida de ratazanas invadisse Mafra, era a história dos soldados que foram enviados para os subterrâneos para salvar os dois primeiros, eram valentes e foram até munidos de um lança-chamas. A ferocidade desses roedores do Inferno foi tal que nem o lança-chamas escapou, devorado por esses seres bestiais com apetite digno de um Tyrannosaurus Rex.
Lendas e histórias que fazem do Palácio Nacional de Mafra um lugar místico, próprio para o desenvolvimento da criatividade humana. Assim o fez José Saramago quando agarrou no monumento e lhe deu vida nova através do amor de Baltasar e Blimunda no Memorial do Convento. Um livro ímpar na nossa literatura e que, enquanto ficção que é, fez com que as também ficcionadas ratazanas gigantes fossem votadas ao esquecimento. Hoje, quem chega a Mafra não pergunta pelos ratos. Hoje, quem chega a Mafra, procura a “pedra do livro do Saramago”. Hoje, e só para este ano lectivo de 2010/2011, o Palácio Nacional já tem mais de 60 mil alunos portugueses inscritos para efectuarem a visita baseada na obra, já para não falar nas muitas visitas de gente de todos os cantos do Mundo que entram no Palácio com uma cópia traduzida da obra.
O que Mafra deve a Saramago, e Saramago a Mafra, é que num momento único o seu génio entrou de corpo e alma no nosso Palácio, fazendo em definitivo explodir a sua escrita e alimentaram-se mutuamente. Ora digam lá se isto não vale mais que alimentar histórias de ratazanas gigantes?

Hélder Franco, jornalista da Rádio Concelho de Mafra

Mafra

Além do Convento, que outra característica da vila assumia dimensões mitológicas? Não saiam daí. Já de seguida a resposta com a contribuição de Hélder Franco, jornalista da Rádio Concelho de Mafra.

terça-feira, novembro 23, 2010

Como as cerejas

E porque os textos são como as cerejas, puxam e chamam uns pelos outros, aqui fica mais um naco escolhido por Lícinia Quitério também,  e que complementa o anterior poema:

Nota à 2ª edição
"Aparece esta edição de Os Poemas Possíveis dezasseis anos depois da primeira. Não é assim tanto, comparando com os dezasseis séculos que sinto ter juntado à minha idade de então. Pode-se perguntar se estes versos (palavra hoje pouco usada, mas competente para o caso) merece segunda oportunidade, ou se a não ficaram devendo a porventura mais cabais demonstrações do autor no território da ficção. Se, enfim, estaremos observando um simples e nada raro fenómeno de aproveitamento editorial, mera estratégia daquilo a que costuma chamar-se política de autores, ou se, pelo contrário, foi a constante poética do trabalho deste que legitimou a ressuscitação do livro, porque nele teriam começado a definir-se nexos, temas e obsessões que viriam a ser a coluna vertebral, estruturalmente invariável, de um corpo literário em mudança. Aceitemos a última hipótese, única que poderá tornar plausível, primeiro, e justificar, depois, este regresso poético.Poesia datada? Sem dúvida. Toda a criação cultural há-de ter logo a sua data, a que lhe é imposta pelo tempo que a produz. Mas outras datas leva sempre também, anteriores, as dos materiais herdados- quantas vezes dominantes-, e, de longe em longe, aquela impalpável data ainda por vir, aquele sentir, aquele ver e experimentar só futuro ainda. Porém, essas entrevisões são coisa apenas para génios, e, obviamente, não é deles que se trata aqui.Poesia do dia passado, da hora tarda, poesia não futuramente. E contra isto não haveria remédio. Salvo tentar trazê-la até ao seu autor, hoje, por cima de dezasseis anos e dezasseis séculos. Assim foi feito, e esta edição aparece não só revista, mas emendada também. Quase tudo nela é dito de maneira diferente, diferente é muito do que por outra maneira se diz, e não faltaram ocasiões para contrariar radicalmente o que antes fora escrito. Mas nenhum poema foi
retirado, nenhum acrescentado. É então outro livro? É ainda o mesmo? Eu diria (e com este remate me dou por explicado) que o romancista de hoje decidiu raspar com unha seca e irónica o poeta de ontem, lacrimal às vezes. Ou, para usar expressões menos metafóricas, procurou tornar Os Poemas Possíveis possíveis outra vez. Ao menos."

José Saramago, Janeiro de 1982

Nacos de prosa saramaguiana* (7)

POEMA À BOCA FECHADA
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

JOSÉ SARAMAGO, in Poemas Possíveis
A escolha de Lícina Quitério, poetisa mafrense e do mundo

* edição especial poesia

Naco de escrita

vem já aí. Desta vez a escolha da poetisa Lícinia Quitério que, salientando uma faceta menos conhecida de Saramago, aposta num naco de poesia. Não se vão embora!

segunda-feira, novembro 22, 2010

Visita de José Saramago à Escola Secundária





Abril de 1999

Fotografias enviadas pelo professor Paulo Passos,
professor de Biologia na Escola Secundária José Saramago

Mais uma experiência saramaguiana...

e um momento importante na vida da Escola Secundária José Saramago já de seguida. Mesmo aí a chegar está o contributo do professor Paulo Passos.

domingo, novembro 21, 2010

Receita de Leitura (25) - Edição Especial 'Mês Saramago'

Dose de Amostra

Chegando assim ao lugar de que o senhor lhe tinha falado, abraão construiu um altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar, Foi o senhor que o ordenou, foi o senhor que o ordenou, debatia-se abraão, Cale-se, ou quem o mata aqui sou eu, desate já o rapaz, ajoelhe e peça-lhe perdão, Quem é você, Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único, Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi. O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam.

José Saramago, (2009), Caim, Alfragide, Caminho.

Composição
Caim, o último livro de José Saramago, contém princípios activos potenciadores de uma boa polémica. Além da exegese e da conotação metafórica, Saramago constrói a narrativa com base na história de Abel e Caim e outros episódios biblícos do Velho Testamento. Causador de uma discussão acesa em vários sectores da sociedade, Caim foi recebido com reacções extremas pela leitura quase literal da Bíblia, linguagem desassombrada e, por vezes, excessiva como o próprio escritor reconheceu publicamente.

Indicações
Caim está recomendado sem restrições aos leitores dedicados do universo saramaguiano. Está particularmente indicado aos amantes de prosas livres sem imperativos morais ou religiosos. Os apreciadores de uma escrita imaginativa experimentaram sensações de bem-estar após a leitura e soltaram amiúde gargalhadas libertadoras. Leitores de mente aberta rejubilaram com a escrita livre e ousada do escritor.

Precauções
Potenciador de reacções contraditórias, Caim deve ser lido com restrições pelos leitores incapazes de olhar a Bíblia apenas como um livro, passível de tantas interpretações quantos os leitores. Indivíduos sensíveis em matéria de questões religiosas experimentaram sensações de cólera furiosa ao lerem as acusações feitas a um deus presente e de desígnios nem sempre claros aos olhos do comum dos mortais. Em leitores interessados foi observada frequentemente uma curiosidade intensa pelo Velho Testamento. Se der por si a procurar a Bíblia nas estantes lá de casa, não desista, saiba que a literatura tem o condão de nos levar mais além na descoberta de mundos fantásticos e que não se compadece com cânones rígidos de interpretações oficiais.

Outras apresentações
Se gostou de Caim e é apreciador de histórias em torno da Bíblia aventure-se. Ler faz sempre bem. Experimente outras prosas de autores diferentes e mergulhe no belíssimo A Mulher que escreveu a Bíblia de Moacyr Scliar e O Novíssimo Testamento de Mário Lúcio Sousa. Leia. Ouse.


Leonor Barros

sábado, novembro 20, 2010

Nacos de prosa saramaguiana (6)

A porta da residência abriu-se enfim e a cabeça redonda do cura apareceu. Que querem vocês a estas horas da noite. Os homens deixaram o portão do passal e avançaram, arrastando os pés, para a outra porta. Está alguém a morrer, perguntou o cura. Todos disseram que não senhor. Então, insistiu o servo de deus, aconchegando-se melhor com a manta, Na rua não podemos falar, disse um homem. O cura resmungou. Pois se não podem falar na rua, vão amanhã à igreja, Temos de falar agora, senhor padre, amanhã poderá ser tarde, o assunto que aqui nos trouxe é muito sério, é um assunto de igreja. De igreja, repetiu o cura, subitamente inquieto, pensando que o apodrecido travejamento do tecto tinha vindo abaixo. Sim senhor, de igreja. Então entrem, entrem. Empurrou-os para a cozinha em cuja lareira esbraseavam ainda uns restos de lenha queimada, acendeu uma candeia, sentou-se num mocho e disse. Falem. Os homens olharam uns para os outros, duvidando sobre quem deveria ser o porta-voz, mas estava claro que só tinha realmente legitimidade aquele que havia dito que ia ouvir o que se estava dizendo no grupo onde se encontravam o comandante e o cornaca. Não foi preciso votar, o homem em questão tinha tomado a palavra. Senhor padre, deus é um elefante. O padre suspirou de alívio, era preferível isto a ter caído o telhado, além do mais, a herética afirmação era de fácil resposta. Deus está em todas as suas criaturas, disse. Os homens moveram as cabeças no modo afirmativo, mas o porta-voz, muito consciente dos seus direitos e das suas responsabilidades, retorquiu. Mas nenhuma delas é deus. Era o que faltava, respondeu o cura, teríamos aí um mundo a abarrotar de deuses, e ninguém se entenderia, cada um a puxar a brasa à sua sardinha. Senhor padre, o que nós ouvimos, com estes ouvidos que a terra há-de comer, é que o elefante que aí está é deus. Quem foi que proferiu semelhante barbaridade, perguntou o cura usando uma palavra não corrente na aldeia, o que nele era claro sinal de enfado, O comandante da cavalaria e o homem que viaja em cima. Em cima de quê. De deus, do animal.

José Saramago, A Viagem do Elefante

Mais um dos meus nacos de prosa saramaguiana

Mais um naco de prosa que se aproxima

Aí vem a passos largos ou deverei dizer a patas largas?

sexta-feira, novembro 19, 2010

Uma personagem em construção (3)

ler o texto anterior aqui

UMA PERSONAGEM EM CONSTRUÇÃO
Ou como, em Memorial do Convento, de José Saramago, se reescreve a História, construindo um herói com os homens que a História olvida


Adriano Alcântara
Escola Secundária José Saramago – Mafra
Janeiro de 2000

III

“É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de se afirmar nos compêndios e histórias, Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz.”
SARAMAGO, José, Memorial do Convento, 16ª ed., Lisboa, Caminho, 1986 , cap. XIX, p.  257

O capítulo dezanove é o mais longo do romance, pormenor sintomático quer da importância que o autor atribui ao debate sobre a condição humana[i] quer da solidariedade e atenção com que o narrador se debruça sobre as personagens que, por força das circunstâncias e do seu labor, sobrevivem oprimidas pelo poder régio e clerical, sem que a História delas acabe por registar uma nota, por pequena que seja.
Embora relacionado com os restantes três núcleos narrativos[ii], pois a presença de Baltasar e dos seus companheiros e a natureza da sua missão bastam para garantir o encadeamento, que é reforçado ainda por diversos outros meios, este capítulo evidencia uma notável unidade diegética. Essa coesão quase o autonomiza e facilita a análise das categorias da narrativa que nele mais contribuem para a construção da personagem colectiva e para a criação dos sentidos que nela se configuram.
Aqui, como no restante emaranhado tecido narrativo, aquela personagem é homogeneizada, de forma a conduzir-se o leitor à assunção da importância que ela sempre assumiu na História, apesar de, como já referimos, esta a marginalizar, perpetuando apenas os grandes vultos individuais. Pelo contrário, em Memorial do Convento, essas figuras históricas são representadas negativamente e acabam, afinal, amaldiçoadas:
(...) amaldiçoado sejas tu [o “monstro de pedra”], mais quem da terra te mandou tirar e a nós arrastar por estes ermos.
XIX, 254
Resumindo, a caracterização e a importância que na diegese se atribui às acções realizadas pela “tropa-fandanga” que é essa personagem colectiva, mais não são do que a tentativa de instaurar uma nova visão dos acontecimentos passados, com vista a devolver à História a objectividade que a ideologia dominante lhe tem subtraído, sub-repticiamente.
É num tom muito próximo da oratura[iii] que no terceiro parágrafo do capítulo dezanove se inicia a acção principal: o relato do trajecto de ida e volta entre Mafra e Pêro Pinheiro, que os trabalhadores têm de palmilhar, rompendo o equilíbrio inicial do seu já penoso quotidiano, a fim de cumprir a tarefa faraónica que lhes foi destinada:
Estava Baltasar há pouco tempo nesta sua nova vida, quando houve notícia de que era preciso ir a Pêro Pinheiro buscar uma pedra muito grande que lá estava, destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da igreja (...)
XIX, 241
A contextualização desta jornada é feita ao longo dos dois primeiros parágrafos. No primeiro, o narrador salienta a dureza do trabalho, aproximando “os homens” das bestas e descrevendo como, num voo da “máquina voadora” se veria todo o país dependente da obra, salvo aqueles que nela directamente labutam, presos
(...) ao globo terra pela lei da gravidade e da necessidade (...) , se os quisermos ver, tem de ser de mais perto.
XIX, 240
Justificado assim o ponto de vista que privilegiará na gesta que vai relatar, o narrador abandona a visão a visão panorâmica e distante que a passarola lhe facultava e aproxima-se dos homens cujas vidas pretende perpetuar. No segundo parágrafo, narra-nos então como Baltasar se envolvera também naquele trabalho, primeiro como “mula de liteira” e, depois, graças à solidariedade de José Pequeno, como boieiro.
O programa da viagem é enunciado, como vimos, no início do terceiro parágrafo, notando-se, logo aí, uma linha de sentido que aponta para a heroificação dos seiscentos homens que nela mourejaram. O discurso entretece-se de modo a evidenciar as dificuldades e perigos da empresa, que acabará por se representar como uma saga ou, no dizer de um frade, uma cruzada:
(...) levar esta pedra a Mafra é obra tão santa como foi a dos antigos cruzados quando partiram a libertar os santos lugares (...)
XIX, 262-263
De facto, para além dos pormenores descritivos, das metáforas, das hipérboles e das anáforas com que se enfatiza o gigantismo da pedra:
(...) e Manuel Milho (...) medindo-se com a laje agora tão próxima, disse, É a mãe da pedra (...)
XIX, 245
do carro em que seria transportada:
(...) espécie de nau da Índia com rodas (...)
XIX, 241
e dos trabalhos a levar a cabo:
“Não é, este, aqui, o caso de levar menos tempo a fazer do que a explicar, pelo contrário (...) É um bico-de-obra, disse o José Pequeno (...)”
XIX, 247
o próprio espaço e o tempo são tratados, como veremos, de forma a provocar, no leitor, o reconhecimento do martírio que foi, para aqueles homens, levar até Mafra aquele “monstro de pedra”. Acabarão por chegar à vila como, no dizer de Gil Vicente, ao reino chegava a maioria anónima dos marinheiros da nossa epopeia: “pelados como formigas”, numa desolação que Baltasar enfatiza, ao relativizar as dimensões da pedra, diante do tamanho descomunal da basílica:
Toda a gente se admirava com o tamanho desmedido da pedra, Tão grande. Mas Baltasar murmurou, olhando a basílica, Tão pequena.
XIX, 264
Neste processo de reabilitação histórica daquela multidão anónima é também importante a única acção secundária encaixada no relato do regresso de Pêro Pinheiro a Mafra:
Mais tarde chegou-se-lhes Manuel Milho que contou uma história, Era uma vez uma rainha que (...) não sabia se gostava, ou não, de ser o que era, porque nunca lhe tinham ensinado a ser outra coisa (...)
XIX, 251
Narrada, ao longo de quatro das sete noites que durou o trajecto, por um dos poucos companheiros de Baltasar a quem o narrador decidiu dar “vida contada”, a história da rainha e do ermitão servirá objectivos diversos, para além de aumentar o efeito de real produzido pela escrita, uma vez que não seria verosímil os homens não conversarem à noite, antes do sono.
Por um lado, permite ao autor problematizar as relações entre História e ficção, pois Manuel Milho diz que
Cada dia é um bocado de história, ninguém a pode contar toda (...)
XIX, 262
assim veiculando uma opinião que sabemos ser a de Saramago[iv]. Por outro, permite ainda ao autor, pela voz de Manuel Milho, tratar alegoricamente de temas que lhe são caros, como a igualdade entre os homens, a natureza da essência humana ou as possibilidades redentoras da revolta:
(...) que é ser não sendo o que se é, e o ermitão respondeu, ninguém pode ser senão sendo, homem e mulher não existem, só existe o que forem e a rebelião contra o que são (...)
XIX, 255
Por fim, permite também ao narrador alicerçar o já referido processo de heroicização da personagem colectiva, já que contribui para a construção de um sentido que afasta “os homens” do imobilismo característico da personagem plana e os aproxima da densidade própria da personagem redonda: a história da rainha e do ermitão acaba por dar, ao leitor, uma ideia da capacidade inventiva e das preocupações daqueles trabalhadores, que, embora analfabetos e oprimidos, nem sempre se revelam conformados ou desprovidos de capacidade de raciocínio crítico.





[i] Tópicos como a miséria, a exploração e a opressão exercidas em nome da vaidade de um “rei infame” são recorrentes neste capítulo, refractando aquilo que o autor pensa: “As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.” – SARAMAGO, José, Discursos de Estocolmo, Lisboa, Caminho, 1999, p. 38.

[ii] A história de “(..) um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra”, a história de “(...) um soldado maneta e de uma mulher que tinha poderes” e a história de “(...) um padre que queria voar e morreu doido.”, tal como se lê na contracapa do romance de Saramago.

[iii] O autor reconhece escrever “(...) a partir do discurso oral, dessa sua conversa contínua, disso que não está escrito, mas que é a comunicação das pessoas umas coma as outras.” No mesmo local, afirma ainda que aquilo a que aspira “(...) é traduzir uma simultaneidade, é dizer tudo ao mesmo tempo.” – REIS, Carlos, Diálogos com José Saramago, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 98-99.
De aí, não é de estranhar que a originalidade do seu estilo se fundamente, sobretudo, na vontade de demonstrar que “as palavras são como as cerejas” ou que, ao falar-se, há sempre um “palavra puxa palavra”, assim sendo inevitável “trazer à baila” do discurso as sentenças, os ditos, os provérbios e mesmo as lendas que comprovam a sabedoria secular da personagem que a narrativa pretende erigir como herói. Recorde-se, a este propósito, a história da rainha que não sabia se gostava de o ser, contada por Manuel Milho aos seus companheiros (XIX, 251 e seguintes).
Simultaneamente, aquela originalidade constrói-se, também, no confronto entre a referida coloquialidade e o artificialismo culto e barroco das inversões, construções anafóricas e paralelísticas, enumerações, comparações, metáforas, personificações, descrições pormenorizadas e visualistas, presentes nos períodos enormes e torrenciais, frequentemente colmatados por frases breves, sentenciosas. A ironia, essa, decorre talvez do desejo de se revelar como é ridícula e hipócrita a vida dos poderosos, em contraponto com a gesta dos dias de quem tem de “fazer pela vida”. “O último a rir é quem ri melhor”, diz o povo...

[iv] “A História que se escreve e que depois vamos ler, aquela em que vamos aprender aquilo que aconteceu, tem necessariamente que ser parcelar, porque não pode narrar, não pode explicar tudo, não pode falar de toda a gente; (...)” – REIS, Carlos, Diálogos com José Saramago, Lisboa, Caminho, 1998, p. 81.

Texto do professor Adriano Alcântara,
professor de Português e Francês na Escola Secundária José Saramago

(continua)